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segunda-feira, 13 de julho de 2009

Conto" LOBO EM PELE DE CORDEIRO "

LOBO EM PELE DE CORDEIRO




Conto:

NOZIEL ANTONIO PEDROSO

31 de agosto de 2007




Definitivamente ele passou a não acreditar mais na Justiça, embora estivesse ainda sobrevivendo dela. Aquele funcionário público arrependeu-se até a alma, quando por fins de semana seguidos levantava-se de madrugada, deslocava-se até aquela repartição, para tentar colocar o serviço em dia. Era papel que não acabava mais: petição daqui, mandado dali, ofício daqui cá, enfim, aquele emaranhado de celulose inútil estava enlouquecendo aquele bom rapaz, que não ganhava nada fazendo serão. Mas para colaborar com a Justiça, ele ia trabalhar aos fins de semana, porque acreditava nela, não de forma plena, mas pelo menos um pouco. Só saía de lá, quando não agüentava mais de fome, isso lá pela uma ou duas da tarde.
Assim Eustáquio Miranda levava a vida. Quando saía de casa, ainda com cerração quase a lhe tapar os olhos, a cobrir a estrada, a mulher recomendava: “Espere, tá muito escuro ainda...espera clarear mais um pouco... “ “Não, quanto mais cedo eu chegar melhor, termino mais cedo... “
Mas que qual, aquele tipo de serviço era interminável. Mexer com papelada de justiça é triste. É como tentar enxugar gelo ou ensacar fumaça, não se termina nunca. É um jogo duro, imparcial, pois enquanto você elimina dois ou três volumes de papel inútil, chega mais uns dez ou vinte. É que nem aquela música do Raul Seixas Mosca na Sopa: você mata uma e vem outra em meu lugar. É uma luta desigual, que te sufoca e te suga.
Eustáquio, no entanto, bobo como ele só, batia no peito e dizia: Não posso deixar acumular. Tenho que fazer, a Justiça precisa de mim. Se não sou eu lá, aquilo desmorona. Pois sim.
No dia a dia os problemas amontoavam. Era cada pepino que pintava com freqüência, que, além que ter que dar conta do serviço atrasado, tinha ainda que trabalhar em novos casos que surgiam a toda hora. Puta merda, vou ter que trabalhar quase que dobrado esse fim de semana.
Pintou um caso grave e complicado: quatro adolescentes provenientes da região sul, roubaram um veículo e estavam fazendo assaltos pela região. Eram eles: Jônatas Paradelo, Fausto Daltora, Durvalino Simão e Manoel Paladino, todos grandões, de físico avantajado. Foram pegos e custodiados. Suspeitava-se até que alguns deles já eram maiores, imputáveis. Esse episódio terminou de forma esquisita, capenga, enigmática. Apareceu no forum um advogado com cara de safado e livrou a cara dos moleques. Disse que se responsabilizava pelos meninos e levaria-os de volta às suas casas. Assim foi feito. Sucede porém que o juiz atuante nos autos, determinou que o procedimento fosse remetido à Comarca de origem dos infratores. Causídico suspeito, meninões com cara de bandidos, termo assinado pelo advogado samaritano. Aquilo tudo acionou a mente ágil de Eustáquio, que captou no ar que alguma coisa não estava bem.
Ele chegou e sussurrou ao Magistrado então, que seria perigoso remeter aquele processo à cidade de origem dos garotos travessos e ficar sem uma comprovação de que eles passaram pela Comarca, inclusive com a prova que eles foram entregues ao tal advogado de caráter duvidoso. Estáquio bateu ainda para o homem da lei, que seria prudente ficar uma cópia total dos autos, para garantia. Vai que acontece alguma coisa pelo longo caminho. O Juiz deu a mão à palmatória e acabou acatando a excelente sugestão apresentada.
Certo dia o dedicado funcionário deixou de fazer uma pequena diligência num dos autos que cumpria. Nada que fosse prejudicar quem quer que fosse. Tratava-se de um processinho de menor potencial ofensivo (Termo Circunstanciado) que, se a vítima não comparecesse na audiência, os autos ficariam aguardando por seis meses uma manifestação da parte envolvida, o chamado prazo decadencial. Se a vítima não der mais as caras, que é o que potencialmente acontece, o feito teria desfecho. Esse era o procedimento de rotina. Sucede porém que num determinado processo, o Juiz resolve dar mais “uma chance ao acusado”, coisa que no rito judicial não acontecia. O dedicado funcionário não atentou para tal fato, posto que aquilo não era usual no dia-a-dia.
Eustáquio. Dez anos trabalhando em cartório. De madrugada, de graça. Aos domingos. Um milhão, quinhentos e oitenta e sete acertos. Apenas um erro não relevante, que não prejudicaria quem quer que fosse. Foi aí que o tal juiz mostrou a cara: esse funcionário é relapso. Vou dar um corretivo que ele não vai esquecer tão fácil. Onde já se viu, esquecer de fazer um mandado? É bem verdade que praticamente o processo vai pro arquivo, uma vez que a vítima não demonstrou interesse, mas o funcionário não cumpriu a ordem que eu dei, porra. Quem ele pensa que é? Só porque trabalhou, fazendo meu serviço, durantes anos, fora de horário, sem ganhar nada? Ora, balela. . . Quem mandou não prestar atenção no que faz? É verdade, reconheço que ele é bom de serviço, muito inteligente, perspicaz, caprichoso, mas...infelizmente, cometeu um errinho, e eu como Juiz, vou ter que agir, dando-lhe uma sanção, só pra ele aprender...Quem manda aqui sou eu. Eu sou o Juiz, pô. E esse funcionário displicente merece mesmo um sabão, ele sabe mais do que deve. Imagine que ele ficou sabendo que eu tracei aquela colega bonitinha dele. Que coisa chata! Todo dia tenho que cruzar com ele e ele sabe que cometi esse deslize, sabe o que eu fiz no verão passado. Eu, porra, um juiz, estou com a imagem arranhada diante dele. Ele ta por dentro da jogada. Puta merda, não é certo um Magistrado de minha estirpe, se envolver sexualmente com uma subordinada. E Eustáquio tem conhecimento. Que raiva. Vou me vingar. O erro que ele cometeu é irrelevante, mas vou ferrá-lo só para me aliviar.
Dias depois Eustáquio estava combinando com os colegas uma comemoração: era aniversário de serviço. Ele e os amigos se reuniriam numa pizzaria para comemorar. Mas aquele abordagem rápida, ríspida e cortante, acabou por atropelar toda euforia. Era uma citação, onde o juiz tomava as providências administrativas contra aquele funcionário dedicado e prestativo. Eustáquio não acreditou no que estava vendo. Mas, puta merda, como esse juiz é filho da puta. Depois de tudo que fiz, depois de tanto trabalho fora de horário... ele não teve a mínima consideração.
E o pobre funcionário teve que sentar na cadeira dos réus e ser interrogado sobre o acontecimento, que aliás o serventuário já havia explicado anteriormente, por escrito, no próprio auto. Que coisa mais ridícula, besta. Fazer o rapaz passar por isso tudo, como se ele fosse um marginal. Mas Eustáquio foi frio e indiferente durante o interrogatório de araque. Sim, porque não tinha nada de sério naquilo. Simplesmente desnecessário aquele teatrinho de merda. No que aquilo iria beneficiar a Justiça? Foi só pra gastar papel e tempo. O funcionário nem quis saber de arrolar testemunhas. Testemunhar o quê, afinal? Se ele esqueceu de expedir aquele mandado pra vítima? Ninguém testemunhou nada. E ele já havia contado por escrito, muito bem explicado, naquele procedimento que dera origem ao feito que pesava sobre si agora.
Ridícula a situação. Mas...o juiz cumpriu o seu intento: aplicou uma medida de repreensão ao funcionário, que serviu apenas para que ele perdesse mais de dois anos de serviço, para efeito de licença-prêmio. Eustáquio recorreu daquela decisão arbitrária, corpulenta, ostensiva, tosca, grosseira, preconceituosa, vingativa, invejosa, covarde, desleal, encoberta, imponente e repugnante. Mas o julgamento em instância superior é feita também por juízes. E quem acha que um juiz vai dar ganho de causa a um funcionário, em detrimento à decisão de um outro juiz? Um juiz é, antes de tudo um agente político, não simplesmente um funcionário público. E tendo política no meio, tudo descamba para o corporativismo. Foi batata. Quatro meses após, o veredicto: o recurso do pobre servente foi ignorado, sequer foi lido. E ele teve que amargar essa “condenação” injusta. Que se há de fazer?
A Justiça (dos homens de toga) conseguiu com isso, tirar todo conceito de um bom homem que confiava no Direito, no discernimento de indivíduos que estudam para aplicarem a justiça, que prestam juramento e prometem trabalhar em prol da Justiça. E que justiça se fez? Prejudicou de graça um serventuário que sempre pautou pelo correto. Estragou toda visão que esse homem tinha de tudo que ele achava direito, de tudo que ele acreditava, de tudo que ele respeitava como direito.
Eustáquio decepcionado, resignado com a decisão que lhe trouxe prejuízo. A partir daí não mais se esforçou, fez falcatruas, passou a usar as mãos por debaixo do pano. Cumpria, a partir de então, sua obrigação de forma passiva, sem o mínimo de ética, respeito e dedicação àquilo que ele fazia com esmero, com escrúpulo. Esse procedimento do Magistrado em achar que estava fazendo uso correto da justiça, punindo um bom homem, serviu só pra deteriorá-lo, no que tange ao respeito que ele tinha pelo escrúpulo, pelo bom, pelo ético, pelo estético, pelo respeito e bom senso! Mas que se há de fazer? Foi pra isso que ele estudou bastante.
Agora o outrora dedicado funcionário a serviço da Justiça, desanima da virtude, ri da honra e tem vergonha de ser honesto, como bem escreveu um sábio Rui Barbosa (há mais de 100 anos) sobre aqueles que cansaram de ver crescer a injustiça, de assistir o triunfo das nulidades e o crescimento do poder nas mãos dos maus. Num mundo de justos, a Justiça portou-se arrogante e contundente, carregando com altivez o lema de injusta e despreparada. Dizem que a Justiça é cega. Pode até ser, mas alguns homens que tem o poder de usá-la vêem, enxergam e escutam muito bem. Que pena!,

Conto " COMO FOI SEU ANO NOVO? "

COMO FOI SEU ANO NOVO?



Conto

NOZIEL ANTONIO PEDROSO

26/dezembro/2007







F 0 I A S S I M. Vá escutando... No dia 31 eu acordei com uma baita dúvida. Aonde será que vou passar o Ano Novo? Na casa da parentada ou lá no meu amigo Renato? Ai, sabe como é, né? Os parentes quando se juntam dificilmente não sai uma desavençazinha, um arranca-rabo, um atrito. É um falando do defeito do outro, como se ele não tivesse defeito... É aquela criançada correndo ao redor da mesa, brincando de pega pega. Haja saco pra agüentar aquele alarido todo. É sobrinho adolescente com aquela nojeira de conferir mensagenzinha da namoradinha no celular... É irmão ou primo com aquela repugnante indiscrição de ficar filmando (também do celular) a gente - escondido - pra depois se divertir com as cenas indiscretas... Aí pensei, pensei, pensei... Vá escutando... Resolvi: vou passar na casa do meu amigo, afinal as filhas já são adultas e só tem a Julinha de criança, uma menininha de 7 anos, que é um amor. Aí, aproveitando que eu levantei cedo, fui fazer café. Enchi a chaleira de água e acendi o fogo. E cadê o coador? Vai eu procurar o coador, tive que quase desmontar o móvel de guardar apetrechos de cozinha. Finalmente encontrei o coador. E a água que não fervia nunca? E tá lá eu, esperando a água ferver, e espera, espera, espera... Finalmente a água começou a ferver... Vá escutando... Aí passei o café. Não é que o coador escapou da plataforma de assento? Puta merda, derrubou tudo, o pó se esparramou em cima da pia, uma zoeira danada, rapaz, misturou pó com café já coado, quase queimei a mão com a água fervente. Tive que fazer tudo de novo. Aí o café ficou um pouco forte. Aí vai eu procurar pão, bolacha, alguma coisa para acompanhar o café. E nada. E agora?
Ah, já sei, vou comprar pão. Aí fui na garagem para funcionar o carro. E o motor que não pega? Fiquei tentando, tentando... E mais uma vez... e nada..,. Será que era o platinado? Ou era o fio solto da bobina? Fui dar uma olhada no motor. Ou seria a vela de ignição? Rapaz, fiquei numa dúvida desgraçada. Como eu não entendo nada de mecânica, fui chamar o meu amigo Walter Catarina, que tem uma oficina perto de casa. E cadê que eu acho o Walter? Cheguei pro filho dele e perguntei: Aonde está seu pai? Ele respondeu assim: papai foi socorrer um motorista lá pras bandas do Grotão do Bento Amaral. Ele vai demorar... Ai meu Deus, meu carro não quer pegar. Será que o Irineu está em casa? Ele pode me quebrar o galho. Vá escutando... Aí fui atrás do Irineu e por sorte consegui encontrá-lo. Aí ele foi comigo até em casa e abriu o capô do carro. E procura defeito daqui, procura dali. Após ajeitar um pouco aquele emaranhado de peças juntas, brada: Vai, tenta dar a partida. E lá foi eu tentar de novo. Nada. Ah, já sei qual o defeito: é no distribuidor. Com essa peça aqui solta, a corrente não passa para o jogo de velas, entendeu? Não.
Olha, o distribuidor tem uma função importante no processo de distribuição de corrente elétrica. Por isso ele tem esse nome. Tem ainda, o platinado, o alternador, todos eles trabalham conjuntamente para que funcione o sistema elétrico do carro. Falei assim pra ele: ô valeu, hein Irineu...
Bem, aí fui comprar o pão, lá na padaria do Nilão. Ih, esse Nilão tá tão gordo, que nem te conto. Não se sabe se ele está andando ou rolando. Falei pra ele que é preciso maneirar na comida, que senão já já ele vira rolha de poço. Bem, voltando ao assunto, aí fiquei em dúvida, se levava pão doce, pão de queijo ou pão francês. Aí, sabe o que fiz? Levei os três.
Sabe quem eu encontrei lá na padaria? O Haroldo Pacheco, lembra do Haroldo? Aquele que casou com a filha do Antenor do Bode? Ah, mas ele tá muito bem. Você não imagina o que ele contou. Que lá onde ele estava morando montou um restaurante e uma casa de congelados. Tá com dois filhos já grandes, o mais velho tá um baita mocetão.
Mas voltando ao assunto, aí quando estava voltando para casa com os pães, me fura o pneu do carro, rapaz. E cadê o macaco? Tive que tirar o estepe, o tapete, tudo, pra procurar esse bendito macaco. E não achei. Foi aí que lembrei que eu tinha emprestado para o Jurandir, aquele que trabalha no Posto do Martins. Vá escutando... e lá vai eu atrás do Jurandir. E cadê que eu acho o Jurandir! Ele estava viajando com o carro e levou o meu macaco. E aquele macaco era hidráulico, rapaz! Pode um negócio desse?
Aí tive que correr atrás de um macaco emprestado. Lembra do Carlão, enteado da vizinha do cunhado do Tião Guarda? Pois, foi ele que me socorreu, imagine só.
Aí fui até onde estava o carro para trocar o pneu. E cadê que eu consigo virar a chave de roda? Aquilo estava duro, não havia cristão que conseguisse virar aquela chave. Eu estava até suando. Tive que correr até em casa para pegar uma marreta. E cadê que eu acho a marreta? Meu irmão havia emprestado para o João da Vitória, lembra dele? Ele andou tendo uns problemas lá na terra da mulher dele. Parece que andou metido com uns caras da pesada, parece que era uns caras que mexem com erva e pó. Como esse negócio dá dinheiro, hein? Tem gente aí montando um império. Aí fui atrás do João, claro. Encontrei ele em casa, mas a marreta estava lá na oficina do Tibico. Vá escutando... Aí descamba nós atrás do Tibico. A oficina estava fechada, em casa ele não estava. Aí um vizinho falou que talvez ele tivesse no boteco do Otaviano. Não deu outra. Lá estava Tibico enchendo a cara, com o Zé Gordo e o Joca Cascudo. Ih, não sei não, mas o cara tá bebendo muito. Aquilo não era hora pra beber, não. Você já ouviu falar que a mulher dele anda ciscando fora do terreiro? Parece que ele arranjou um sócio de alcova. Também, né, o cara só pensa em jogar bilhar e esvaziar garrafa. E a mulher dele não é de se jogar fora, não. Tá bonitona, vistosona, anda metida nuns vestidos assim, decotados, que só vendo. Dizem até que ela usa só fio dental. E a mulher tá largadona por aí. Ainda mais que ultimamente ela está andando muito com Ritinha Zero Hora e Gracinha Chuleta. Não sei, não, onde há fumaça há fogo. Por falar em fogo, você ficou sabendo que pegou fogo no galpão do italiano? Foi um puta bafafá. Não sei não, mas depois que o italiano praticamente grilou aquele pedaço de terra da família Gaudêncio, lá no Morro do Cospe Fogo, que ele não vem dormindo direito! Dizem as más línguas, longe de mim ficar falando mal dos outros, que foi o Josias e o Zaqueu, junto com o Tiãozinho Calado. Olha, bico de siri, hein...
Mas voltando ao assunto, quase fiquei sem a marreta, Tibico estava já mais pra lá do que pra cá. Depois de todo esse esforço consegui, com a ajuda do Carneiro, tirar a roda do carro para trocar. Mas a hora que fui pegar o estepe, você não vai acreditar: o estepe estava murcho. Aí tive que levar o pneu até o Beto Borracheiro para consertar. Rapaz, foi um trabalhão desgraçado mas finalmente consegui colocar o pneu no carro.
Aí fui pra casa, até quase perdi a vontade de tomar café. Mas sabe como é, né? Saco vazio não pára em pé. Assim que tomei café fui arrumar as coisas para passar o fim de ano lá na cabana do Renato. Você precisa conhecer lá, rapaz. É uma casa pequena, isolada. Tem um baita terreirão, todo de areia. Do lado tem uma árvore que dá uma bela sombra. O bom é que lá venta muito, por causa da proximidade com o mar. Vá escutando... De vez em quando Renato e seu compadre de São Paulo, o Tibúrcio, pegam a rede e vão pescar na praia. Cá entre nós, nunca pegam nada, é só pra perder tempo. Outro dia o Tibúrcio quase se afogou, caiu numa queda d’água e se não fosse o Alfredão, um conhecido que mora por lá, ter socorrido o homem, ele já tinha partido dessa pra melhor.
Aí ficamos na casa bebendo e batendo papo até chegar meia-noite. E essa meia-noite que não chega... e nós esperando, esperando o momento de abrir o champagne. Demorou mas chegou. E o champagne que não abre? Quase esfolei meu polegar naquela tampa que é maior que o buraco. Já reparou que a tampa é uma baita rodela maior que o orifício da garrafa? Reparei isso quando fui a uma festa na casa de um primo, que na verdade é enteado de uma prima minha que mora lá no interior, a Rosinha. Bem, aí deu a hora, confraternizamo-nos todos e fomos para a rua ver os fogos de artifício. Rapaz, cada clarão bonito, tinha um que parecia uma cascata de pedras preciosas, cada uma de uma cor...
Encontramos por lá com uns conhecidos, que foram...Bem, pra encurtar a história, voltei à cabana e estourei um outro champagne, um de cor rosa, que comprei porque achei bonito. Cara. Uma delícia, tomei até a última gota...
CHEGA, já não agüento mais suas histórias sem fim!
Pode continuar falando aí, sem parar, que eu vou nessa...
Puxa, cara mal educado, pergunta como foi meu Ano Novo e vai embora sem ouvir. Cada uma que me acontece...

sexta-feira, 26 de junho de 2009

Conto "ANTES QUE SEJA TARDE"

ANTES QUE SEJA TARDE

Conto:

NOZIEL ANTONIO PEDROSO

maio de 2007



Um bonito rio, qual serpente de prata reluzente, cortava aquela região próspera, onde muitos fazendeiros revezavam-se no cultivo de terras e quantidade enorme de rebanho bovino. Transcorria o ano de 1951. O mundo procurava se recuperar das agruras da Segunda Guerra Mundial que ainda deixava vestígios, apesar desse lamentável episódio ter acontecido de 1939 a 1945. Ali, a apenas três léguas da cidade, era agradável aos olhos aquela imensidão de terras ocupadas por inúmeras plantações e pastagens, o que igualava-se a um gigantesco tapete verde a se perder de vista. Para comandar o vultuoso rebanho, Afonso Mesquita, dono da fazenda, havia contratado boiadeiros experientes da região. João Ataíde, o Camarão, Espiridião Santana, Santantão, Bernardo Torquato, Araribá, Lázaro de Almeida, Lambari, eram alguns deles. Mas nenhum se destacava mais que Henrique Feliciano, mais coinhecido por Escorpião. Decerto, o homem de estatura mediana e ágil atirarador de facas, não tinha esse apelido por conta de seu signo no Zodíaco e, sim pelo seu veneno. Conta-se que o boiadeiro era capaz de qualquer coisa por dinheiro, a única linguagem que ele conhecia. E nessa sua vida de "cangaceiro" Escorpião já havia sujado as mãos de sangue por diversas vezes. Geralmente as vítimas eram grileiros de terras, ou desafeto de algum fazendeiro insatisfeito, que "encomendava" o sumiço do oponente via saraivada.
Noite de São João. Uma grande fogueira soltava faíscas e esquentava a noite de inverno. As pessoas aproveitavam o fogo para assar batata e pinhão. Grande festança. Crianças a brincar, sanfoneiro a tocar para animar a festa. Algumas pessoas dançando pelo salão. Aquela morena era formosa, os cabelos pretos e longos caíam por sobre os ombros e chamava a atenção dos homens. Saracoteava pra lá e pra cá, com uma leveza peculiar. Era Rutinéia, uma bela cabocla, que habitava aquelas paragens. Escorpião botou os olhos na moça e ficou babando de paixão. Após alguns encontros pelos matos da imensa propriedade, Henrique propôs á camponesa, concubinato. Depois de um certo tempo, o boiadeiro viu-se cercado por cinco filhos. A vida em família era por demais tumultuada, pois Henrique não era lá o que pode se chamar de homem sensato, de bom tato e comportamento convencional. Batia na mulher e nos filhos, principalmente quando estava bêbado. Essa situação era do conhecimento de todos ali pela redondeza.
Maria Aparecida Feliciano, filha mais nova do casal, era a que mais sofria com a situação. De todos os irmãos, nascidos naquela fazenda, Cidinha foi a que deu mais trabalho na hora do parto. Quase matou a genitora, que sofreu horrores quando da parição. Por conta desse incidente, a garotinha sofria nas mãos do pai e, o que é pior, também da mãe, que nutria por ela um rancor e um ódio sem razão de ser.
Face á essa situação inusitada, a pobre menina era jogada de lá pra cá, feita uma cachorra sem dono. Ora ficava na casa de uma tia, ora ficava na casa da avó. Ou, ainda, com parentes próximos, distantes, e até com estranhos, que penalizavam-se com a triste situação da criança. E o pai, sempre bebendo e maltratando a família, mas Cidinha estava, de certo modo, livre das maldades dos pais, uma vez que, na maioria das vezes, morou com outras famílias.
Na pequena cidade, o Lar das Irmãs Cambonianas, uma entidade filantrópica, cuidava de pessoas carentes, doentes e desamparados. Vira e mexe, casais abastados, oriundos das mais distantes cidades, iam para lá, a fim de contribuir com aquela pequena instituição altruísta, devido aos convênios que a entidade mantinha com redes públicas. Aconteceu de um belo dia, Ataíde e Hilda, botarem os olhos em Cidinha. De cara gostaram da menina, que já ostentava em seu semblante marcas de sofrimento. Coitadinha, com uma carinha tão sofrida. "Quero falar com os pais dessa menina. Pretendo levá-la para São Paulo e dar-lhe estudo". "Tudo bem, vou chamar o pai dela". E algum tempo depois dava as caras por ali Henrique Feliciano, aquele homem grosseiro, com cara de mau. "O senhor é o pai dela? Deixe-me levar a menina para morar na Capital. Há mais chances dela se desenvolver por lá. Lá tem mais futuro". "Nada disso, enquanto eu for vivo, essa menina vai ficar por aqui mesmo. Mas, depois que eu morrer, aí sim, podem levá-la para onde quiserem." Foi com essas palavras que Henrique decidiu o destino da filha caçula.
Entretanto, o que parecia distante e improvável acabou acontecendo dias depois. Parecia até uma profecia. Depois de bebericar pelos bares da vizinhança, o boiadeiro cruel lá vinha em seu cavalo, no mais intenso galope. O homem castigava o animal no chicote, de modo que o alazão colocava sebo nas canelas. O cavalo, enfurecido pela dor, corria cada vez mais. Não deu outra. Quando estavam próximos a um enorme barranco, o parelheiro caiu de mau jeito, levando o boiadeiro a voar pelos ares. Henrique caiu no chão com tudo e sofreu traumatismo craniano, ao bater a cabeça numa enorme pedra. Isso levou-o á morte, horas depois. Terminava ali a vida daquele boiadeiro, que tanta maldade havia feito. Que seria dele agora? Dizem que Deus escreve certo por linhas tortas. Não seria então um castigo aquele acontecimento? Todos diziam que sim.
E Cidinha, o que seria de seu destino agora? Será que aquele casal iria cumprir a promessa de levá-la para a Capital? Como é que seria a vida por lá? Pensamentos dessa natureza, dúvidas, incertezas e fantasias, infestavam a cabecinha daquela loirinha bonitinha, que agora via-se frente á frente com seu destino incerto, aliás destino esse que toda vida sempre foi errante e sem direção. Agora haveria uma oportunidade dela mudar de vida de vez e, desvencilhar-se das maldades que tanto sofrera na infância. "Sim, vou aceitar, não aguento mais essa vida nesse lugar atrasado. Tenho certeza que vou me dar bem", pensava Cidinha, enquanto tentava formar na cabeça a imagem de uma cidade grande, com prédios, carros e bastante gente se movimentando.
O tempo havia se arrastado para a sofrida menininha e, contava ela agora com nove anos. Cidinha, não obstante a tenra idade, tinha o coraçãozinho sofrido, magoado, pelo que havia passado com os pais. Mas, o que mais a desgostava, era o fato de sua mãe odiá-la. Não era possível que isso tivesse acontecido. Na maioria das vezes, a mãe é sempre a figura protetora da criança, principalmente quando se tem um pai violento e boçal, como era o caso. Cidinha não tinha nenhum alento, não tinha ninguém no mundo que se importasse com ela, já que as pessoas que mais deviam ampará-la e preservá-la, eram os que mais a maltratavam. A bonita garota entrou de cabeça e, apesar da pouca idade, sentia-se já com determinação e bastante segura do que queria e desejava. A vida havia lhe ensinado que deve-se agarrar a primeira oportunidade, quando se quer mudar de vida. Se é que aquilo podia ser chamado de vida.

SÃO PAULO, Capital de um dos mais importantes estados brasileiros, em termos de polo industrial e expansão territorial, fins de 1968, início de 1969. Edson Arantes do Nascimento, até então o maior jogador de todos os tempos, mais conhecido por Pelé, perto de fazer seu milésimo gol. O Brasil governado por Arthur Costa e Silva. Cidinha agora prestes a entrar em um outro ritmo de vida, cidade grande, coisa de Capital. Ataíde e Hilda estavam realmente empenhados em oferecer á sofrida menina, uma vida mais digna.
E as regras de convivência? Cidinha teria de ser praticamente reeducada, uma vez que havia um enorme disparate entre seus pais e seus protetores. A família, depois de um certo tempo, fixou residência em uma outra cidade, próxima do mar. Ótimo. Cidinha havia aprendido muita coisa, cursou o primário e o ginasial. Estava gostando de quase tudo em sua nova fase, mas apenas um fator atrapalhava a vida da menina: o isolamento. Cidinha não podia sair de casa, vivia praticamente presa. Não que o casal guardião fosse mau, queria apenas preservar a menina.
Acontece que o tempo passou. Havíamos adentrado já o ano de 1978, o Brasil havia acabado de deixar a Argentina, onde participou da Copa do Mundo, saindo derrotado de campo. O Presidente do Brasil, Ernesto Geisel, encontrava-se prestes a deixar o cargo e João Baptista Figueiredo, o próximo General do Exército a tomar posse da Nação. Maria Aparecida Feliciano estava agora com 19 anos. Tornara-se uma bonita moça, cabelos louros cacheados, olhos verdes, cintura fina, pernas bem torneadas, sorriso cativante e o que mais chamava a atenção de todos: a fina educação, bons modos, polidez e bondade. Cida era uma garota digna de povoar os sonhos de qualquer homem de bom senso. Seu coração, porém agora cicatrizado, não abrigava ninguém. Talvez, inconscientemente, estivesse se reservando para algo especial.
Mas um acontecimento brusco e gratuito, desagradou profundamente a mocinha sonhadora. Final de ano, o Clube Regatas anunciava para o Rèveillon a apresentação do Conjunto Face Oculta, que era o mais popular grupo musical do momento. E Cida, como qualquer mocinha de sua idade, estava doidinha para ir ao baile. O casal guardião até concordou em deixar sua protegida se divertir com as amigas e dançar, afinal não havia nada de mal nisso. A bonita garota iria ao baile, não fosse a intervenção de Solange, a falsa amiga da menina. A invejosa chegou até Ataíde e Hilda e destilou seu veneno. Disse ao casal que Cida já tinha combinado de se encontrar com um rapaz, de caráter duvidoso, e até que os dois iriam cair no mundo, juntos. Que já há algum tempo Cida estava com essa idéia na cabeça. Diante dessa notícia reveladora, os guardiães resolveram bater pé firme e não deixar a moça sair de casa. A moça ficou estupefata com a negativa do casal e, bastante surpresa com a atitude deles, uma vez que ela negou todos os fatos narrados pela delatora.
Face ao bom relacionamento que mantinha com o casal guardião, isso foi um divisor de águas na vida da garota e deixou-a muito chateada e até magoada, com a falta de confiança daqueles que ela até considerava como seus pais. Cida recolheu-se ao quarto e chorou por essa grande injustiça.
Ponderou bastante, passou praticamente a noite em claro, pensando em tudo que já lhe acontecera nessa sua vida quase que errante.
Pensou e chegou a uma conclusão: "vou pedir para ir embora".
No dia seguinte, sem drama nem rodeios Cida solicitou ao casal seu retorno á terra natal. A viagem não fôra como aquela da vinda, cheia de expectativa, de emoção, de sonhos. A viagem de volta foi triste, resignada, vazia, técnica, automática, sem qualquer sensação.
E a readaptação ao antigo ambiente? Como seria? Cida estava até preparada para esse choque. Tal como havia previsto, o desconforto era enorme. A moça, educada na Capital e de hábitos finos, encontrava-se até titubeante frente á nova situação. E sofria muito com a nova realidade. Cida, moça já feita, infância sofrida, passado inexpressivo e obscuro, entre a liberdade e a repressão. O que mais faltava agora? O que mais a vida estava lhe reservando? Ás vezes ela pensava consigo que tinha vindo à terra só para sofrer. Não era possível que ela fosse perseguida por tanto sofrimento. Estaria ela pagando por alguém através de reencarnação? Porquê? Haveria sobrado infortúnio para qualquer outra pessoa na face da terra? Ou todo sofrimento do mundo estava direcionado apenas para si?
Faltava um amor na sua vida. Nunca que seu coração havia batido forte por alguém, mas aquele rapaz lhe chamou a atenção. Cida gostou dele, logo de cara. O tipo de paixão à primeira vista. A moça carecia de um pouco de felicidade, já que a vida havia lhe castigado por demais. Ah, vou tentar, quem sabe a redenção de todo sofrimento por que passei, não está nesse rapaz? Mereço um teto, uma vida digna, um raio de sol, uma luz no túnel, um arco-íris. Cida, nos braços de Antenor. Que tal morarmos juntos, fazermos uns filhos? A moça sofrida investiu alto na relação, que ela via como uma mudança radical na sua vida. Até que enfim, valeu a pena esperar tanto tempo, passar por tudo que passei. Agora sou feliz, tenho cinco lindos filhos. Diga-me você, aonde vou colocar toda essa felicidade? Ás vezes acho que é injusto eu ter tanto amor, tanta felicidade e outros não terem quase nada. Mas... que remédio, a vida nem é sempre justa. Vejam o que aconteceu comigo quando era criança, sofri muito, fui humilhada, maltratada, agora sou pararicada, valorizada, respeitada e até invejada por muitas mulheres. É difícil achar alguém que tenha um homem tão perfeito como o meu: educado, generoso, romântico, inteligente, compreensivo, calmo, pacato. Você aí que está lendo, quer um pouco de felicidade? A vida finalmente compensou todo sofrimento que tive. Acho que em sua essência, a vida é isso. É a gente passar maus bocados, sofrer, enfrentar dificuldades, chorar, se desesperar, mas nunca esmorecer e resignar-se frente ás situações vivenciadas. Assim sonhava Cida, em sua fértil imaginação. É bem melhor fantasiar a lancinante realidade, do que render-se a seus escabrosos efeitos. Levando-se em conta que o ser humano é capaz de usufruir do poder da mente, Cida camuflava sua realidade com as mais edificantes fantasias.
Sim, a vida estava á sua frente, palpável, incandescente, despida de qualquer perspectiva, crua, evadindo-se pelas laterais, transbordando por entre as agruras daquele dia-a-dia contundente, tosco, obscuro, perpendicular. Vou render-me á fantasia, vou esbaldar-me aos devaneios. ANTES QUE SEJA TARDE!

Conto "AOS TRANCOS E BARRANCOS"

AOS TRANCOS E BARRANCOS

Conto

NOZIEL ANTONIO PEDROSO

Novembro de 2007

Fim de tarde naquele bairro movimentado daquele subúrbio denominado Capoava do Engenho. Heloísa Sampaio rompeu de vez com a vizinha fofoqueira. Onde já se viu? Ficar falando por aí que seus filhos eram tranqueiras, desordeiros e que só pensavam em badernar? Ora, é bem verdade que eles não me obedecem, ficam a maior parte do tempo na rua, mas daí dizer uma barbaridade dessa, já é demais. Pelo menos, meus filhos não andam em más companhias. Não vivem metidos com drogados...
É, aquela mulher estava por conta com a falação daquela moradora das adjacências. E de fato, os irmãos Wilson e Wellington Palhares não eram lá de boa índole, não eram batizados e como se diz no interior: não eram flores que se cheirasse.
Dizem até que os dois entraram na escola onde estudavam, num dia de domingo. Uma vez dentro da cozinha os dois fizeram a maior bagunça. Cozinharam a merenda, devoraram pão com mortadela, comeram tudo que encontraram pela frente e, não contentes, forçaram a porta da classe e furtaram alguns dos cadernos que estavam cuidadosamente guardados no armário, inclusive de colegas deles. E pra completar ainda cagaram no chão e limparam o cu nos panos de prato. Quer baderna maior do que isso? Mas nada estava provado contra eles. Ora, todos conheciam de cor e salteado as atitudes indecentes daqueles moleques. A maioria do pessoal daquela rua, sabia quem eram aqueles encrenqueiros. Tá escrito na testa deles, ora essa! Somente a mãe mesmo, a bobona, pra enfiar a mão no fogo por eles.
E Heloísa, que vida. Que saco. É o que dá morar num lugar atrasado. E Augusto, que não me aparece. Será que tá no bar enchendo a cara? Eu não duvido nada. Meu Deus, que vou fazer de minha vida? Marido beberrão, pinguço, filhos metidos em encrencas. Tenho que cuidar da vida, não posso parar de trabalhar, senão vamos passar fome.
Num bairro próximo, Ladeira do Vintém, morava Luzia, melhor amiga de Heloísa desde os tempos de escola. A boa mulher tinha um padrão de vida bem mais privilegiado que Heloísa, Casara-se com Abdias Santana, um próspero comerciante, que foi crescendo dia após dia. O homem era mesmo trabalhador, começou a vendinha com meia dúzia de produtos. E foi crescendo, progredindo, evoluindo, até que em pouco mais de dois anos o estabelecimento já tinha mais que o dobro do tamanho de que quando iniciara. Claro que o varejista não havia parado por aí. Tratou de trabalhar mais, diversificou os produtos, colocando mais serviços a disposição da já selecionada e ampla freguesia. Seguindo-se nesse ritmo, o homem em pouco tempo já possuía um outro pequeno estabelecimento, com qualidade de serviço.
Nisso Luzia, representante da empresa Graciosa, que comercializava produtos de beleza, cosméticos e perfumes, já não mais podia com os encargos, posto que precisava dar atenção à esse novo empreendimento da família. Chamou o marido na conversa: “Abdias, não posso mais continuar com a Graciosa e com nossa prestadora de serviço. Na verdade, não está dando para conciliar. Tenho que repassar a representação para alguém”. “É, mas tem que ser alguém de confiança, pra não decepcionar Dona Yara. Ela não mora aqui e confia plenamente em você”. “Ah, já sei, você se lembra daquela minha amiga lá do Engenho? A Heloísa? Ela esteve aqui outro dia e trabalhou pra nós! “Ah, sim, lembro, a moça do lenço na cabeça! Claro, claro, você tem razão, ela é mesmo de confiança. Percebi isso nas conversas que você teve com ela. Sabe como é, né? A gente que é comerciante tem as manhas. Podemos captar de antemão quem é malandro e quem não é.” “Eu também tenho isso Abdias. Aprendi com a profissão em quem se deve confiar ou não. Então tá resolvido, vamos falar com a Heloísa”.
Nossa, como as coisas dão uma virada assim de repente? De diarista a moça do subúrbio passou a ser representante de uma das mais conceituadas empresas a serviço da beleza. Heloísa não era boba, não. Clotilde Antunes, uma cliente elegante e endinheirada chega pra ela e conversa: “Olha, tenho uma coisa a propor a você. Será que a empresa não pode fazer um preço mais em conta, para eu comprar em grande quantidade? Até que compensa. “Não sei, vou ver com a patroa. Pode ficar tranqüila, que eu. vou conseguir para a senhora. Primeiro vamos ver qual a proposta da senhora, para eu poder negociar com a dona da empresa. Acredito que ela não vai se opor, afinal quem não gosta de ganhar dinheiro? Até eu”.
Proposta preenchida, diálogo estabelecido. Pronto. Estava feito. E nessa empreitada, Heloísa ganhou um dinheirão, coisa assim de três meses de salário. Puta merda, agora vou poder pagar aqueles móveis novos praticamente à vista. E Wellington e Wilson? Até que os meninos deram uma folga. Depois de participarem do Projeto Reeducando para o Futuro, uma parceria do Departamento de Educação com a Pastoral da Juventude, aliado ainda com a entidade filantrópica Estendendo a Mão, os meninos parece que acharam o caminho. Aliás, mudaram da água pro vinho. As pessoas têm mania de culpar entidades desse tipo, salientando sempre que não funcionam, mas é só ter boa vontade e espírito participativo que a coisa funciona, assim ponderava Heloisa. Os meninos não mais se metiam mais em encrencas e eram até bons alunos. Claro, estavam tendo uma vida mais confortável, comendo melhor, se vestindo com mais decência. Acontece também que eles estavam mais crescidos e, por conseguinte, mais conscientes. Uma coisa que ajudou bastante foi que ficaram livres da má influência do pai, que se meteu em outras empreitadas e foi embora do barraco. Ainda bem. Graças a Deus.
Só assim pra Heloísa e os dois moleques terem um pouco de sossego. Atraso na vida, nunca mais. Heloísa, quem diria, hein? O tempo passou e os meninos agora já eram rapazolas e estavam no caminho para a universidade. Wellington queria fazer Educação Física, já Wilson História. Quanto vai custar isso? Será que vou dar conta de pagar a faculdade deles? Acho que sim, pois além de representante da Graciosa, ainda faço contato com a minha clientela para aquela clínica de estética do Dr. Guilherme Marconi. Isso está me rendendo uma boa comissão. Do jeito que a coisa tá indo, logo logo vou poder montar meu próprio negócio. Heloísa, a vida indo de vento em popa. E aquele marmanjão, com pinta de vagabundo, de olho comprido na bela mulher, que prosperava a cada dia. Heloísa nem quis saber de conversa. O quê? Arrumar outro vagabundo para viver ás minhas custas e me maltratar? Nem pensar, ante só do que mal acompanhada. Não vou jogar tudo que consegui até agora. Pra gente conseguir ir pra frente demora um bocado e a gente tem que trabalhar pra cacete. Mas para partir para uma bancarrota é fácil, fácil. A gente vive no limite da realidade, na corda bamba, no tapa, no grito, na raça, às vezes leva as coisas aos trancos e barrancos, não é mesmo Abdias?

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Conto "UMA CHAVE NA MÃO"

UMA CHAVE NA MÃO

CONTO

NOZIEL ANTONIO PEDROSO

10 de setembro de 2008



Três anos haviam se passado desde Wagner retornara àquela localidade. A parada longe daquele lugar não fôra lá de muito sucesso, as coisas haviam empacado. Lá onde havia estado, o garoto não recebia apoio nem ajuda de ninguém, razão pela qual deu uma fracassada no âmbito profissional. Que se há de fazer? As coisas custam mesmo, a entrar nos eixos. Mas agora de volta ao seu lugar, o jovem estava determinado a recuperar o tempo perdido, se é que se pode recuperar algo dessa envergadura, pois o tempo que se vai jamais se recupera. Assim Wagner dava seus primeiros passos nesse retorno à terra natal, às suas origens. Como não podia deixar de ser, Waguinho, como era conhecido ali em Capogaba, em anos passados tinha duas manias intocáveis: o futebol de várzea e a amizade com Deja Moreno e Beto Salupam. Todo mundo ali do pedaço, sabia que o trio era inseparável. Estavam sempre juntos nas quermesses, nas festas da comunidade, na igreja, nos enterros e, claro no futebol e as comemorações após o futebol.
Deja, Beto e Waguinho, que amizade. Aquilo até virava roda de comentário entre muita gente ali do pedaço. Muita gente por ali dizia que entre aqueles três rapazes havia vínculos mais fortes até que uma irmandade. Não era de se duvidar, não. Pintou uma excursão para a cidade litorânea de Pérola Branca. E lá vai o trio, mais unido que nunca. Ah, aventura, curtição, isso que é vida. E aí gente, vamos todos para a Praia do Moinho Sem Vento. Pô, o sol tá bombando à toda, a água deve de tá uma delícia, Vamos todo mundo salgar o filé, caramba! Iú, Irra, puta merda, que barato, cara! E lá vem mais uma onda, todo mundo mergulhando por baixo. Porra, essa foi demais, hein... Êi Deja, nada de se afastar mais, cara... Lá pra cima é perigoso, ô meu... ah, que que há? Eu nado melhor que peixe desde criança!
Olha, não sei, não... Você sabe, né, quando a onda começa a puxar o sujeito para mar aberto, dificilmente ele consegue voltar... Mas, vocês são uns cagões mesmo... essa ondinha de merda não tá com nada, né Waguinho? Acho que não convém subestimar a força da natureza. O Beto tem razão, Deja, a força da onda quando está levando algo para alto mar, é implacável. Ah, tô vendo que vou sozinho nessa. Puta merda, como esse cara é turrão, hein... bem, ele sabe o risco que é... Vamos ficar por aqui mesmo!
Waguinho e Beto permanecem por ali mesmo, na parte menos perigosa, ensaiando um mergulhozinho ameno, inconsequente. É, mas temos que admitir: Deja sabe nadar como ninguém... Isso lá é verdade, mas não funciona como garantia pra ninguém... O que não tem que acontecer, não acontece... Não adianta. Isso é verdade. Olha, lá vem ele de volta. Ufa, ainda bem!
Hoje a noite, hein moçada, vai ter um belo churrasco no clube Regatas! Vamos tomar umas geladas.
A noite que chega, aquele mundaréu de gente, é bandeja que vai, é bandeja que vem, é espetinho que chega, é espetinho que vai pro bucho. Êh, lasquera! Amanhã cedo vamos dar um passeio em São Gonçalo do Araruna. Lá tem um museu e vamos visitar ainda a fábrica de bola da Escanteio & Companhia. Vai ser um dia cheio, hein... Será que vai dar tempo de darmos um mergulho? Ah, certamente que sim, a gente vai pela manhã, fica até a hora do almoço e vem embora. É apenas 22 quilômetros entre essas duas cidades. E vamos passar também em Floresta do Araçá, lá é a famosa terra do pé-de-moleque. Puxa, quanta coisa. Pena que essa viagem dure apenas três dias. Queria que fosse pelo menos por uma semana, aí sim dava pra gente curtir bastante! E aí, Deja, animado com a aventura? É claro, mas quem não tá?
Viagem concluída. Todos voltam às suas respectivas rotinas. Mas, uma série de assassinatos estava ocorrendo ali em Capogaba, região de Bauxita, onde morava Wagner. Que chato. O local, outrora tão pacato, agora era surpreendido por grupos rivais de traficantes, que disputavam pontos de drogas. Há uns cinco anos mais ou menos, várias indústrias e fábricas multinacionais haviam se instalado no local, trazendo progresso para o local. E isso arrastou consigo grupos de favelados, famílias paupérrimas, e toda sorte de gente dos mais diversos tipos, que deslocaram-se àquela localidade, por conta do progresso que parecia ter chegado por ali. O progresso caracteriza-se por seu processo ambíguo. Ao mesmo tempo em que ele aparentemente traz divisas, traz a escória, como tráfico, banditismo, prostituição e coisas do gênero.
Oito assassinatos já havia ocorrido por ali, dos mais diversos gêneros, como acerto de contas, latrocínio, crime encomendado e até estupro e estrangulamento. Wagner, Deja e Beto estavam agora mais cautelosos, voltando cedo para casa. Mas certo dia o trio foi à cidade vizinha, Campo Novo, encontrar-se com um empresário que iria patrocinar um campeonato de futebol. Assim que desvencilham-se do compromisso, os três amigos caminhavam por uma rua escura até chegarem ao ponto de ônibus, Um tiroteio nas proximidades gelou a espinha dos rapazes. Rapidamente entram num beco e escondem-se. Um dos malfeitores do fogo cerrado também adentra o beco e, é fuzilado pelo grupo adversário. Beto, Waguinho e Deja! Que enrascada, que desespero. Os três entreolham-se assustados, sem saber o que fazer. Em seguida ouvem a sirene da polícia, que chega com tudo. Os três amigos, coitados, não têm nem tempo de explicar: são enquadrados como autores do homicídio. Às vezes, a polícia na ânsia de resolver o assunto, pega quem está mais próximo da cena do crime, por ser talvez mais prático.
E nessa Deja, Beto e Waguinho foram parar no xadrez, eram suspeitos em potencial. Prisão preventiva, prisão temporária. Nada de benefícios, de relaxamento. Crimes contra a vida são complicados, não há perdão para quem não tem dinheiro. É cadeia mesmo. Que injustiça. Não havia argumento que desse jeito. Os três amigos, que judiação, explicaram tudo. Não eram dali, não eram traficantes e nem sabiam lidar com armas. Ah, conta outra, vá? Vai dizer também que é parente do Papa? Liga para meus parentes e eles vão esclarecer tudo. E aí, vagabundo? Acha que eu tenho jeito de garoto de recado? Daqui a dois meses você pede arrego para o Juiz, ele sim pode dar um jeito. Dois meses? Meu Deus, vamos ficar presos dois meses? Por enquanto! Se forem condenados, poderão pegar um pouquinho mais, né Janjão? Ah, ah, ah, o homem da capa preta vai bater o martelo e decidir o destino de vocês! Waguinho, Beto e Deja deram-se as mãos, fizeram um pacto. Já que estamos abandonados, sem alguém que acredite na gente, vamos aguentar firmes e nos ajudarmos. Vamos sair dessa, afinal Deus, somente ÊLE, sabe que somos inocentes. ÊLE não vai permitir que paguemos por uma coisas que não fizemos, afinal esse sim, sabe fazer Justiça.
A muito custo, passa-se os dois meses que separavam os amigos do julgamento. E o veredicto é assinado pelo Juiz, dias depois. Carcereiros se aproximam da cela e comunica ao trio de amigos, que o santo deles era bom, o homem da lei havia determinado a soltura deles. Eles quase nem acreditam, abraçam-se, choram, agradecem à Deus. Pela justiça que agora estava sendo feita, embora de forma tardia. Waguinho, entre soluços e risos, dizia: Eu sabia, eu tinha certeza, que DEUS não ia nos abandonar. Sabe, amanheci cheio de esperança, pois tive um sonho a noite passada e nele Nosso Senhor colocava uma chave na minha mão. Agora sei, era um aviso. Ele colocava em nossas mãos a chave da nossa liberdade!

Conto "ZERO À ESQUERDA "

ZERO À ESQUERDA

Conto

NOZIEL ANTONIO PEDROSO

Novembro de 2006

(Texto analítico sobre o comportamento de pessoas excluídas dos meios sociais, no trabalho, no clube, nas esquinas, nas rodinhas, nas festas e, em tudo, em geral)


À primeira vista, o título pode parecer pejorativo, depreciativo, desrespeitoso, provocativo, desprezivo, enfim uma porrada de coisas mais, que signifiquem bancarrota. Mas, ao analisarmos o contexto sob o prisma da ótica da inteligência, da percepção, tal codinome - por mais que pareça ofensivo - transporta-nos para, digamos, um universo mais tranquilo, que incontinenti conota-se como isenção de responsabilidade.
Por mais que o apelidado possa esboçar algum resquício de inteligência, Q.I. acima da média, raciocínio rápido e preciso, capacidade de conciliação, ele é sempre mal visto e, por conseguinte, evitado e mais desprezado que nem cueca em lua de mel. Mas, atenção ZEROS Á ESQUERDA, nem tudo está perdido. Eis que surge, ainda que de maneira ínfima, de forma exígua, uma minúscula visão de, pelo menos um pontinho positivo. Não vão pensar que é alguma pontinha de esperança, porque isso não existe, pois o zero à esquerda é que nem cego em terra de olhudos.


SAIBA TIRAR PROVEITO.


O Zero à Esquerda, como geralmente é desprezado e posto de lado, jamais poderá ser cobrado de forma efetiva e com veemência, não é verdade? Se ele não fizer o serviço de forma correta, isto é, se fizer cagada em cima (pode ser também debaixo, de lado, de fianco, pelas laterais) de cagada, ninguém poderá cobrá-lo, afinal quem é ele? E outra vantagem: o zero à esquerda é tão ignorado que ele pode tranquilamente fazer suas falcatruas, que não será denunciado . Denunciar a quem? Ele é e sempre será considerado um grande merda, A AMEBA DESPREZÍVEL QUE INSERIU-SE NO VERME, QUE ENCONTRA-SE NAS ENTRANHAS DO MOSQUITO QUE VAI SOBREVOAR O COCÔ DO CAVALO MANCO DO BANDIDO. Quem se importa com um tipo assim? É que nem cueca: Só fica por baixo e quando aparece dá vexame.


ENFRENTE DE CABEÇA ERGUIDA.


Mas, como tudo tem o reverso, o zero à esquerda sofre quando o assunto é festa, confraternização, amigo secreto, essas coisas. O cara é deixado de lado, porque ninguém quer correr o risco de sortear o nome do incauto. O zero à esquerda é invisível, ninguém consegue enxergar o cara. É tido e mantido pelos outros como um tipo insuportável, um grande goiabão, insosso, um filho da puta, um babaca, energúmeno, boçal, mentecapto, e por aí vai. Por conta dessa condição, passa despercebido em todas as camadas, inclusive as do bolo, da sociedade, da neve, do cimento, do caralho a quatro.
0 zero à esquerda leva desvantagem também na área gastronômica. Em festas, todos se empaturram de churrasco, maionese, farofa, numa comilança sem igual. Mas ao zero à esquerda, nada. Ninguém dá comida pro coitado. Como ninguém o vê, para poder oferecer algo, ele tem que se virar senão fica de barriga vazia.
O sujeito que todos desprezam e, sequer fazem questão de esconder essa condição, é um indivíduo que ninguém gosta e é sempre chacoteado por todos nas rodinhas. Na maioria das vezes, é um cara chato às pampas. Claro, imagine, pra chegar a esse ponto. Geralmente é do tipo que nunca está contente com nada, que torce o nariz para as convenções e tudo que o circunda é de má qualidade, primitivo, sempre aquém do esperado por ele. Mas o zero à esquerda, geralmente tem forte personalidade, e tem lá suas razões. O que fazer se ele vive fora de seu eixo? Como fazer com que o mundo adapte-se a ele? Ele que se foda, e trate de adaptar-se ao mundo, porque o mundo (na verdade, ninguém) não está nem aí pra ele, está cagando e andando pra seus enjoamentos. Ah, não gosta disso, não gosta daquilo? Então, que vá tomar no cu. Vá á puta que o pariu, quem mandou ser nojento assim? Aqui você não tem vez, vai procurar o caminhão daonde você caiu, veado. Ninguém aqui quer saber de você.
Não obstante seja, às vezes, considerado um reacionário, Zero a Esquerda tem lá suas ideologias, seu modo peculiar de pensar e agir, sem influência de quem quer que seja.



A VINGANÇA


Porém, numa coisa o zero à esquerda tem destreza e possui uma qualidade fora de série, que até passa despercebida por todos, porque todos fazem questão de sequer reparar que o zero à esquerda existe e encontra-se ali ocupando um espaço no universo. Ele é detentor de uma percepção acima do normal, e quase nada à sua volta escapa de suas lentes captadoras. Possui raciocínio rápido e numa passada de olhos abrange tudo. Tem grande poder de convergência e num simples lampejo consegue inserir-se no contexto sem que ninguém aperceba-se disso. Muitas vezes quando ouve algum comentário em uma rodinha, ou um determinado assunto, ele já está mais que por dentro da jogada, enquanto os outros ainda estão queimando as pestanas para entender ou decifrar. Não raras vezes o assunto que pipoca ao redor está mais do que distorcido e equivocado. Zero à Esquerda tem uma ampla visão e enxerga de forma nítida o que ainda não aconteceu. Assim sendo ri por dentro da ignorância generalizada que desenvolve-se à sua volta. Ele não fala nada, pois ninguém quer saber de falar com ele, porque, é claro, é considerado um zero à esquerda, um grande bosta, um cu de cachorro. Dissertando-se, outrossim, sobre esse orifício corrugado que localiza-se na, por assim dizer, parte central da região glútea, e nesse animal quadrúpede, mamífero e carnívoro, diz-se que um zero à esquerda falando e um cachorro cagando, a segunda opção é, de longe, sempre a mais apreciada.
Quando, às vezes, o zero à esquerda está só em determinado local, quando perguntam se tem alguém ali, todos respondem: Não, não tem ninguém aqui, não. O local está vazio.
Mas o zero à esquerda - na maioria das vezes - também não está ligando pra merda. Faz e acontece, a seu modo e ninguém, por mais que as tentativas sejam exaustivas, consegue, de todo, fazê-lo sentir-se um merda, em toda a extensão da palavra. Está deitando e rolando com o que pensam a seu respeito e acha todos uns babacas, incapazes de olharem pro próprio umbigo. Alguns têm como lema aquele velho ditado, que usa-se sempre pra se dar uma pontadinha em alguém, de forma enfática e contundente: DUAS COISAS ATRAPALHAM A SOCIEDADE: O CÔRO DOS INVEJOSOS E O CORDÃO DOS PUXA-SACOS. Quer mais é que tudo se foda. Ele tem suas convicções e valores, e na sua própria avaliação até que dá pro gasto. O resto é coisa de quem está com a piscina cheia de ratos e idéias que não correspondem aos fatos, como já disse Agenor Araújo Neto, nos anos 80.

Registro-SP, 17 de Novembro de 2006. Eu___________Noziel Antonio Pedroso, analista de comportamento humano e observador inveterado, o redigi, digitei e imprimi. Agora, pare e reflita bem, após tudo que leu: Você é um zero a esquerda?

sábado, 6 de junho de 2009

Conto " INFELIZ NATAL "

INFELIZ NATAL

Conto :
Noziel Antonio Pedro­so
Abril de 1992



E lá vinha novamente ele encostando-se nela, insinuando-se de forma prática e objetiva. Ela tinha repugnância por aquele homem ali a seu lado, que em seu machismo primitivo e ignorância pré-histórica, achava-se no direito de usar e abusar dela, uma vez que estavam casados há mais de dez anos. E ai dela se não permitisse que ele a comesse do seu jeito estúpido­ e egoísta. Aquilo não estava dando mais. A situação estava ficando insustentável e o asco que ela sentia por tudo aquilo estava deixando-a quase louca. Anita passava horas durante o dia, pensando sobre como iria safar-se dessa situação desoladora. "Meu Deus, tenho que dar um fim na minha vida. Não. Não posso. O que será de Alexandre e Adriana? Não posso deixá-los”. E pensamentos dessa natureza ­estavam infestando a cabeça confusa da pobre mulher. O que mais deixava Anita infeliz era o fato de que sua sogra sabia dos maltratos que ela sofria e não lhe dava o mínimo apoio. "Se pelo menos eu tivesse um emprego, podia abandonar esse filho da puta e cuidar sozi­nha das crianças. Mas como? Estou morando aqui de favor".
Anita vinha sustentando essa situação há pelo menos dois anos, quando tudo havia começado a desmoronar. Lembrava-se com pouca precisão do início de seu casamento com Nestor. Depois de um namoro de três anos, da burrada de ter se entregado a Nestor antes do casamento, da gravidez indesejada e fora de época, da tremenda luta para comprar os parcos móveis que agora estavam a sua frente, da modesta "festa" de casamento, da despedida dos parentes, votos ­de felicidade, agora sua vida se resumia naquele tormento. No começo do casamento Nestor até que era carinhoso e atencioso para com ­ela. Mostrava-se um homem preocupado com as coisas da casa e desdobrava-se o quanto podia para deixar tudo em ordem. Anita, acomodada, nunca havia experimentado um orgasmo, mas Nestor sabia agradá-la. Porque então querer tudo de uma vez? Se as coisas estavam bem porque reclamar? Mas... como será um orgasmo? Puxa, já ouvi falar, as amigas me contam. Que curiosidade... E se ele ficar chateado se eu contar pra ele que nunca gozei? Ele pode até me mandar pra fora de casa e me xingar de vagabunda, porque na cabeça desses homens ignorantes mulher não pode gozar. Mulher que goza e demonstra isso é porque é mulher sem vergonha, uma puta da vida.
Natal de 1986. Anita e seus filhos resolvem passá-lo na casa de Terezinha, sua melhor amiga, que conhecia como ninguém aquela situação pungente por que Anita estava passando.
- Ah, Terezinha, agora ele se acha no direito de dizer que minhas amigas é que estão me virando a cabeça. Veja só, só porque a Zuzu é separada do marido, a Sílvia também. Mas ele é tão burro que não consegue enxergar que elas só fizeram isso porque seus maridos anda­vam metidos com aquelas biscates nojentas.
- É lógico que ele sabia, a cidade inteira sabia. Acontece que os homens acham que têm direito e pronto...
- São uns crápulas, fazem o que bem entendem...
- É, o negócio deles é chegar em casa e ter a mulher esperando que eles cheguem bêbados e sujos, sabe-se lá com quem andaram e o que andaram fazendo...
- Ah, mas isso nenhuma mulher agüenta. Cada vez mais eu tenho nojo do Nestor. Vai chegar uma hora em que eu terei que ...
Anita põe-se a chorar em um pranto desabalado que Terezinha até ­se assusta com as convulsões.
- Deixe disso, Anita, aquele canalha não merece isso. Cuidado, Alexandre e Adriana podem estar por perto. Não deixe nunca eles verem ­isso, senão que forças terão para te ajudar? Eles têm em você um exemplo de força.
- Tem razão, Terezinha - rebatia Anita, já se recompondo do pranto e enxugando os olhos com as mãos.
- Olha, querida, estamos aqui para comemorarmos o Natal. Hoje é dia de alegria, de festa, apesar de tudo.
- É mesmo... você tem razão, estou atrapalhando tudo, não é?
- Não. Não foi isso que eu quis dizer, Anita. Estou dizendo apenas que não podemos nos deixar abalar pelos problemas. Um dia tudo há de se resolver.
Nestor, homem alto, forte, cabelos ondulados e negros, na plenitude de seus trinta e poucos anos, andava para lá e para cá, com um copo de bebida na mão, resmungando:
- E Anita que não chega nunca? Ela disse alguma coisa pra senhora, mãe?
- Não, não me disse nada, como sempre. Pra ela aqui eu sou um zero a esquerda. Não me dá satisfação nenhuma.
- Ora, mãe, não exagere. Anita é minha mulher ...
- Eu sei, filho, mas esta morando aqui em casa praticamente. Eu tenho o direito de saber das coisas, pelo menos dos meus netos.
Acho que ela foi passar o Natal na casa de alguma amiga - inter­feria Adolfo, irmão mais novo de Nestor.
- Ah, mas se aquela descarada fez isso, vai se arrepender ...
- Deixe disso, meu irmão. Você e Anita precisam se entender. Não acho correto você ficar pressionando-a. Até bater nela você já chegou. Que é isso, Nestor?
- Não se meta nisso, Adolfo. Sou eu quem resolvo minhas coisas. Cuide de sua vida...
- Êi, gente, estamos no Natal, não é hora de brigas...
Nestor toma aquela bebida num só gole e sai da sala, onde todos os familiares estavam reunidos para a chegada da data magna da cristandade.
- Essa história de Nestor e Anita ainda vai acabar mal. Coitada da Anita – sussurrava Afonso para a namorada.
Na casa de Terezinha o ambiente natalino era bastante diferente. Todos conversavam animadamente. Em dado momento a anfitriã anuncia.
- Gente, chegou a hora. Atenção, todos aqui reunidos, porque Renato vai cantar pra gente.
- Viva - gritavam em coro todos os presentes.
Renato pega o violão, ajeita-se no banquinho e vai encantando a platéia, que ali se formava para ouvi-lo: "Quero a paz neste Natal, refletindo a todo mundo, e pedir ao Papai Noel, de presente uma ora­ção, pra que seja eterno o Natal e o mundo todo irmão".
Anita vai se envolvendo no conteúdo bonito daquela canção e as lágrimas começam a brotar de seus olhos. Fica pensando consigo: "Se todos estão felizes, porque eu também não posso? O que essas pessoas têm ­mais do que eu? Não, decididamente no ano que vem eu não vou passar por isso...”
Hora de voltar para casa. Todos se despedindo, votos de um Feliz Natal, sorrisos, abraços fraternos, confraternização, taças de champagne tilintando, esperanças renovadas, promessas de renovação, beijos. Anita. Alexandre. Adriana. E para eles, como seria dali pra frente?
- Onde você esteve? Todos aqui em casa estavam esperando você e as crianças.
- Ora, Nestor, fui passar o Natal na casa de Terezinha.
- Podia ao menos ter me avisado. Fez todo mundo aqui em casa de palhaço.
- Ué, mas você sempre passa o Natal e fim de ano com seus amigos cachaceiros no Bar do Mandi.
- Não chame meus amigos de cachaceiros, que é isso...
- Tá bom, Nestor, vamos parar por aqui. É que faz uns quatro ou cinco anos que você não passa o Natal em casa.
- E daí, sua obrigação era me avisar.
Anita resolve não mais discutir com o marido. Ele estava cambaleante. Conhecia-o bem. Aquilo era um barril de pólvora, bastava uma fagulha pra tudo incendiar. Mais uma vez resigna-se à sua condição de esposa e aceita os insultos.
- Terezinha, ele voltou a me bater. Vou ter que matar aquele homem.
- Não, não faça isso, Anita. Não seja louca, vai estragar a sua vi­da. Com uma atitude dessa, impensada, você só vai piorar as coisas.
- Ora, Terezinha, como é que ele pode me bater a hora que quiser?
- Acontece que a mulher é sempre a errada. Dirão que Nestor era um homem trabalhador e cumpridor de seus deveres e você, a mulher que tinha tudo em casa, que vivia batendo perna pela rua. As leis foram ­feitas para defender os homens, porque foram feitas pelo homem. Você sabe como são essas coisas. Pelo que você me conta nenhum dos irmãos dele e até seus sogros, estão do seu lado...
- Pois é, até quando vou carregar essa cruz?
- É uma situação difícil, amiga. Você está pagando um preço muito alto por seu erro. Você já falou em separação?
- Já, claro que já. Ele reagiu de forma violenta. Me chamou de sem vergonha e tudo o mais. Além disso pra onde e que eu vou com duas crianças?
-Não há mesmo jeito para uma reconciliação?
- Eu não suporto nem mesmo o cheiro dele. Você sabe lá o que é ter que agüentar isso?
O tempo vai passando. Anita. Alexandre e Adriana. Aquela situação. Dona Marieta, mãe de Nestor, sempre ali por perto ouvindo discussões, comentando com a vizinhança a sem vergonhice da nora. Imagine. Ela tem de tudo em casa. Meu filho é um homem bom, nunca fez mal pra ninguém na vida. Ela só sabe reclamar de tudo. Meu filho outro dia até comprou uma geladeira, com sacrifício. O que mais ela quer? Tá certo que ele às vezes vai beber com os amigos no bar, mas e daí? Ele é homem, tem o direito. Além disso qual homem que vai fi­car enfurnado em casa ouvindo os choramingos da mulher? Eles estão morando aqui nos fundos de casa, não pagam aluguel. Não é qualquer ­sogra que faz isso. Sou uma verdadeira mãe para ela, aceitei ela aqui em casa, já embuchada. É bem verdade que ele andou batendo nela algumas vezes, mas ela deve ter merecido. Meu filho não ia bater assim ­nela à toa. O que ela fez? Não sei, só sei que meu filho, bom do jeito que é, não ia bater nela sem motivo. Tem gente que não sabe agra­decer o que tem.
Anita. Alexandre. Adriana. Que vida, que bosta de vi­da. Que brigaiada, que tanto de discussão. Que baixaria.
- Mãe, eu quero bisteca. Outro dia fui na casa de Felipe e a mãe ­dele fez bisteca no almoço.
- Esta bem, Alexandre. Mamãe vai dar um jeito.
À custa da venda de alguns objetos que possuía em solteira, Anita consegue alguns parcos cruzeiros e compra bisteca para o filho. Dona Marieta observando.
Mais um ano se passa. Fim de ano. Correria para fazer as chamadas "compras de Natal". Brasileiro é assim. Adora ser repetitivo, ama a mesmice, se deleita na redundância, se esbalda na vulgaridade do habitual. Natal. Mania de beber vinho e comer leitão! E os votos de Feliz Natal? Que chatice que são. Todo mundo se acha na obrigação de esbanjar sorriso, esquecendo-se que leva uma vidinha fodida o ano inteiro. É Natal? Oba, vamos esquecer tudo que fizemos de ruim. É aniversário de Jesus Cristo. É mesmo? Nem sabia. Então porque está bebendo e comemorando? Não sei, todo mundo está, oras! Árvore de Na­tal. Cuidado, não deixe cair as bol... Nossa, caiu tudo no chão, que­brou mais da metade. Vem cá, vou lhe dar umas palmadas bem dadas.
Mas, espere aí, não é Natal? Cadê o clima de irmandade, de confraternização? É mesmo, ia me esquecendo. Natal é isso, né? Mas depois que passar o Natal você me paga.
- E aí Nestor, ainda esta na cachaça?
- É meu, estou bebendo desde ontem. É para comemorar o Natal, né ô meu? Grande Natal ...
- Como vai Anita?
- E eu lá sei daquela cadela?
- Peraí, é sua mulher, rapaz, como pode falar as...
- Esquece, esquece, vamos beber, põe seu copo aqui... Afinal é Na­tal, cara... o negócio é encher o carão... ah, ah, ah, alegria total... Anita. Alexandre. Adriana. Presentes de Natal. Ih, que saco, aquela boneca de plástico da venda do seu Manduca. Caramba, aqueles homenzinhos da TV outra vez? Eu tava a fim mesmo e de um videogame, como os meus colegas têm... ou aquela bicicleta de marcha. Será que papai pensa que ainda tou nessa de brincar com essas miniaturas?
Isso é Natal? A mesma coisa do ano passado. Mudou só a data. 1987. Um ano de plano cruzado, plano Bresser. Que grande bosta. Anita pede a Nestor que passe o Natal em casa. Tem pinga? Tem vinho? Então tudo bem. Adormecem. Dia seguinte. Nossa, que calorão.
Olha, Anita e Nestor nem levantaram ainda. Como é que podem dormir com um solão destes? Mas, peraí, já são quase três da tarde. Vamos chamar por eles, o almoço já está na mesa. Silêncio. Tornam a chamar. Novamente silêncio absoluto. Batem desesperadamente à porta. Resposta: silêncio pleno e absoluto. Entreolham-se assustados. Será? Porque não abriram a porta? Aconteceu alguma coisa. Vamos arrombar... É isso, vamos lá, força aí..... Uhhhh, ah... Pronto ... Cadê eles? Nossa ...
Estão lá... Meu Deus! Anita, acorde.. Meu Jesus, ela não se mexe... Veja, Nestor está meio roxo e com a língua entre os dentes como se estivesse mordendo alguma coisa... O que é isso? Santo Cristo, tem a caveirinha na embalagem, é veneno... Então... Isso mesmo... Pobres crianças, não foram poupadas... Que grande covardia. Anita, abraçada às crianças sobre o sofá e Nestor, caído sobre o tapete do chão, com um copo quebrado a seu lado. Último Natal da família... Infeliz Natal...
Vejam só o que deu. Eu não dizia? Pobre Nestor, não sabia a cadela que tinha em casa. Mulher mal agradecida. Não tinha o direito de acabar com a vida de um homem tão bom como meu filho. Ele era trabalhador, honesto, bom pai de família, alegre. Ela sim, que devia morrer sozinha, à míngua, seca, esturricada, mas não dar fim na vida do pobre do Nestor. Cadela, sem vergonha, há de queimar no fogo do inferno. Vivia batendo perna pela rua, fazendo não sei o quê. Outro dia, ainda, saiu de casa levando umas coisas, sei lá pra que. Voltou, logo depois, com um embrulho na mão. Sabe-se lá por onde andou e o que andou fazendo. Coisa boa é que não era. Acho até que ela tinha um amante. Sem vergonha... cadela. Ainda bem ela se foi, e se foi tarde...