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segunda-feira, 13 de julho de 2009

Conto" LOBO EM PELE DE CORDEIRO "

LOBO EM PELE DE CORDEIRO




Conto:

NOZIEL ANTONIO PEDROSO

31 de agosto de 2007




Definitivamente ele passou a não acreditar mais na Justiça, embora estivesse ainda sobrevivendo dela. Aquele funcionário público arrependeu-se até a alma, quando por fins de semana seguidos levantava-se de madrugada, deslocava-se até aquela repartição, para tentar colocar o serviço em dia. Era papel que não acabava mais: petição daqui, mandado dali, ofício daqui cá, enfim, aquele emaranhado de celulose inútil estava enlouquecendo aquele bom rapaz, que não ganhava nada fazendo serão. Mas para colaborar com a Justiça, ele ia trabalhar aos fins de semana, porque acreditava nela, não de forma plena, mas pelo menos um pouco. Só saía de lá, quando não agüentava mais de fome, isso lá pela uma ou duas da tarde.
Assim Eustáquio Miranda levava a vida. Quando saía de casa, ainda com cerração quase a lhe tapar os olhos, a cobrir a estrada, a mulher recomendava: “Espere, tá muito escuro ainda...espera clarear mais um pouco... “ “Não, quanto mais cedo eu chegar melhor, termino mais cedo... “
Mas que qual, aquele tipo de serviço era interminável. Mexer com papelada de justiça é triste. É como tentar enxugar gelo ou ensacar fumaça, não se termina nunca. É um jogo duro, imparcial, pois enquanto você elimina dois ou três volumes de papel inútil, chega mais uns dez ou vinte. É que nem aquela música do Raul Seixas Mosca na Sopa: você mata uma e vem outra em meu lugar. É uma luta desigual, que te sufoca e te suga.
Eustáquio, no entanto, bobo como ele só, batia no peito e dizia: Não posso deixar acumular. Tenho que fazer, a Justiça precisa de mim. Se não sou eu lá, aquilo desmorona. Pois sim.
No dia a dia os problemas amontoavam. Era cada pepino que pintava com freqüência, que, além que ter que dar conta do serviço atrasado, tinha ainda que trabalhar em novos casos que surgiam a toda hora. Puta merda, vou ter que trabalhar quase que dobrado esse fim de semana.
Pintou um caso grave e complicado: quatro adolescentes provenientes da região sul, roubaram um veículo e estavam fazendo assaltos pela região. Eram eles: Jônatas Paradelo, Fausto Daltora, Durvalino Simão e Manoel Paladino, todos grandões, de físico avantajado. Foram pegos e custodiados. Suspeitava-se até que alguns deles já eram maiores, imputáveis. Esse episódio terminou de forma esquisita, capenga, enigmática. Apareceu no forum um advogado com cara de safado e livrou a cara dos moleques. Disse que se responsabilizava pelos meninos e levaria-os de volta às suas casas. Assim foi feito. Sucede porém que o juiz atuante nos autos, determinou que o procedimento fosse remetido à Comarca de origem dos infratores. Causídico suspeito, meninões com cara de bandidos, termo assinado pelo advogado samaritano. Aquilo tudo acionou a mente ágil de Eustáquio, que captou no ar que alguma coisa não estava bem.
Ele chegou e sussurrou ao Magistrado então, que seria perigoso remeter aquele processo à cidade de origem dos garotos travessos e ficar sem uma comprovação de que eles passaram pela Comarca, inclusive com a prova que eles foram entregues ao tal advogado de caráter duvidoso. Estáquio bateu ainda para o homem da lei, que seria prudente ficar uma cópia total dos autos, para garantia. Vai que acontece alguma coisa pelo longo caminho. O Juiz deu a mão à palmatória e acabou acatando a excelente sugestão apresentada.
Certo dia o dedicado funcionário deixou de fazer uma pequena diligência num dos autos que cumpria. Nada que fosse prejudicar quem quer que fosse. Tratava-se de um processinho de menor potencial ofensivo (Termo Circunstanciado) que, se a vítima não comparecesse na audiência, os autos ficariam aguardando por seis meses uma manifestação da parte envolvida, o chamado prazo decadencial. Se a vítima não der mais as caras, que é o que potencialmente acontece, o feito teria desfecho. Esse era o procedimento de rotina. Sucede porém que num determinado processo, o Juiz resolve dar mais “uma chance ao acusado”, coisa que no rito judicial não acontecia. O dedicado funcionário não atentou para tal fato, posto que aquilo não era usual no dia-a-dia.
Eustáquio. Dez anos trabalhando em cartório. De madrugada, de graça. Aos domingos. Um milhão, quinhentos e oitenta e sete acertos. Apenas um erro não relevante, que não prejudicaria quem quer que fosse. Foi aí que o tal juiz mostrou a cara: esse funcionário é relapso. Vou dar um corretivo que ele não vai esquecer tão fácil. Onde já se viu, esquecer de fazer um mandado? É bem verdade que praticamente o processo vai pro arquivo, uma vez que a vítima não demonstrou interesse, mas o funcionário não cumpriu a ordem que eu dei, porra. Quem ele pensa que é? Só porque trabalhou, fazendo meu serviço, durantes anos, fora de horário, sem ganhar nada? Ora, balela. . . Quem mandou não prestar atenção no que faz? É verdade, reconheço que ele é bom de serviço, muito inteligente, perspicaz, caprichoso, mas...infelizmente, cometeu um errinho, e eu como Juiz, vou ter que agir, dando-lhe uma sanção, só pra ele aprender...Quem manda aqui sou eu. Eu sou o Juiz, pô. E esse funcionário displicente merece mesmo um sabão, ele sabe mais do que deve. Imagine que ele ficou sabendo que eu tracei aquela colega bonitinha dele. Que coisa chata! Todo dia tenho que cruzar com ele e ele sabe que cometi esse deslize, sabe o que eu fiz no verão passado. Eu, porra, um juiz, estou com a imagem arranhada diante dele. Ele ta por dentro da jogada. Puta merda, não é certo um Magistrado de minha estirpe, se envolver sexualmente com uma subordinada. E Eustáquio tem conhecimento. Que raiva. Vou me vingar. O erro que ele cometeu é irrelevante, mas vou ferrá-lo só para me aliviar.
Dias depois Eustáquio estava combinando com os colegas uma comemoração: era aniversário de serviço. Ele e os amigos se reuniriam numa pizzaria para comemorar. Mas aquele abordagem rápida, ríspida e cortante, acabou por atropelar toda euforia. Era uma citação, onde o juiz tomava as providências administrativas contra aquele funcionário dedicado e prestativo. Eustáquio não acreditou no que estava vendo. Mas, puta merda, como esse juiz é filho da puta. Depois de tudo que fiz, depois de tanto trabalho fora de horário... ele não teve a mínima consideração.
E o pobre funcionário teve que sentar na cadeira dos réus e ser interrogado sobre o acontecimento, que aliás o serventuário já havia explicado anteriormente, por escrito, no próprio auto. Que coisa mais ridícula, besta. Fazer o rapaz passar por isso tudo, como se ele fosse um marginal. Mas Eustáquio foi frio e indiferente durante o interrogatório de araque. Sim, porque não tinha nada de sério naquilo. Simplesmente desnecessário aquele teatrinho de merda. No que aquilo iria beneficiar a Justiça? Foi só pra gastar papel e tempo. O funcionário nem quis saber de arrolar testemunhas. Testemunhar o quê, afinal? Se ele esqueceu de expedir aquele mandado pra vítima? Ninguém testemunhou nada. E ele já havia contado por escrito, muito bem explicado, naquele procedimento que dera origem ao feito que pesava sobre si agora.
Ridícula a situação. Mas...o juiz cumpriu o seu intento: aplicou uma medida de repreensão ao funcionário, que serviu apenas para que ele perdesse mais de dois anos de serviço, para efeito de licença-prêmio. Eustáquio recorreu daquela decisão arbitrária, corpulenta, ostensiva, tosca, grosseira, preconceituosa, vingativa, invejosa, covarde, desleal, encoberta, imponente e repugnante. Mas o julgamento em instância superior é feita também por juízes. E quem acha que um juiz vai dar ganho de causa a um funcionário, em detrimento à decisão de um outro juiz? Um juiz é, antes de tudo um agente político, não simplesmente um funcionário público. E tendo política no meio, tudo descamba para o corporativismo. Foi batata. Quatro meses após, o veredicto: o recurso do pobre servente foi ignorado, sequer foi lido. E ele teve que amargar essa “condenação” injusta. Que se há de fazer?
A Justiça (dos homens de toga) conseguiu com isso, tirar todo conceito de um bom homem que confiava no Direito, no discernimento de indivíduos que estudam para aplicarem a justiça, que prestam juramento e prometem trabalhar em prol da Justiça. E que justiça se fez? Prejudicou de graça um serventuário que sempre pautou pelo correto. Estragou toda visão que esse homem tinha de tudo que ele achava direito, de tudo que ele acreditava, de tudo que ele respeitava como direito.
Eustáquio decepcionado, resignado com a decisão que lhe trouxe prejuízo. A partir daí não mais se esforçou, fez falcatruas, passou a usar as mãos por debaixo do pano. Cumpria, a partir de então, sua obrigação de forma passiva, sem o mínimo de ética, respeito e dedicação àquilo que ele fazia com esmero, com escrúpulo. Esse procedimento do Magistrado em achar que estava fazendo uso correto da justiça, punindo um bom homem, serviu só pra deteriorá-lo, no que tange ao respeito que ele tinha pelo escrúpulo, pelo bom, pelo ético, pelo estético, pelo respeito e bom senso! Mas que se há de fazer? Foi pra isso que ele estudou bastante.
Agora o outrora dedicado funcionário a serviço da Justiça, desanima da virtude, ri da honra e tem vergonha de ser honesto, como bem escreveu um sábio Rui Barbosa (há mais de 100 anos) sobre aqueles que cansaram de ver crescer a injustiça, de assistir o triunfo das nulidades e o crescimento do poder nas mãos dos maus. Num mundo de justos, a Justiça portou-se arrogante e contundente, carregando com altivez o lema de injusta e despreparada. Dizem que a Justiça é cega. Pode até ser, mas alguns homens que tem o poder de usá-la vêem, enxergam e escutam muito bem. Que pena!,

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