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sábado, 6 de junho de 2009

Conto " INFELIZ NATAL "

INFELIZ NATAL

Conto :
Noziel Antonio Pedro­so
Abril de 1992



E lá vinha novamente ele encostando-se nela, insinuando-se de forma prática e objetiva. Ela tinha repugnância por aquele homem ali a seu lado, que em seu machismo primitivo e ignorância pré-histórica, achava-se no direito de usar e abusar dela, uma vez que estavam casados há mais de dez anos. E ai dela se não permitisse que ele a comesse do seu jeito estúpido­ e egoísta. Aquilo não estava dando mais. A situação estava ficando insustentável e o asco que ela sentia por tudo aquilo estava deixando-a quase louca. Anita passava horas durante o dia, pensando sobre como iria safar-se dessa situação desoladora. "Meu Deus, tenho que dar um fim na minha vida. Não. Não posso. O que será de Alexandre e Adriana? Não posso deixá-los”. E pensamentos dessa natureza ­estavam infestando a cabeça confusa da pobre mulher. O que mais deixava Anita infeliz era o fato de que sua sogra sabia dos maltratos que ela sofria e não lhe dava o mínimo apoio. "Se pelo menos eu tivesse um emprego, podia abandonar esse filho da puta e cuidar sozi­nha das crianças. Mas como? Estou morando aqui de favor".
Anita vinha sustentando essa situação há pelo menos dois anos, quando tudo havia começado a desmoronar. Lembrava-se com pouca precisão do início de seu casamento com Nestor. Depois de um namoro de três anos, da burrada de ter se entregado a Nestor antes do casamento, da gravidez indesejada e fora de época, da tremenda luta para comprar os parcos móveis que agora estavam a sua frente, da modesta "festa" de casamento, da despedida dos parentes, votos ­de felicidade, agora sua vida se resumia naquele tormento. No começo do casamento Nestor até que era carinhoso e atencioso para com ­ela. Mostrava-se um homem preocupado com as coisas da casa e desdobrava-se o quanto podia para deixar tudo em ordem. Anita, acomodada, nunca havia experimentado um orgasmo, mas Nestor sabia agradá-la. Porque então querer tudo de uma vez? Se as coisas estavam bem porque reclamar? Mas... como será um orgasmo? Puxa, já ouvi falar, as amigas me contam. Que curiosidade... E se ele ficar chateado se eu contar pra ele que nunca gozei? Ele pode até me mandar pra fora de casa e me xingar de vagabunda, porque na cabeça desses homens ignorantes mulher não pode gozar. Mulher que goza e demonstra isso é porque é mulher sem vergonha, uma puta da vida.
Natal de 1986. Anita e seus filhos resolvem passá-lo na casa de Terezinha, sua melhor amiga, que conhecia como ninguém aquela situação pungente por que Anita estava passando.
- Ah, Terezinha, agora ele se acha no direito de dizer que minhas amigas é que estão me virando a cabeça. Veja só, só porque a Zuzu é separada do marido, a Sílvia também. Mas ele é tão burro que não consegue enxergar que elas só fizeram isso porque seus maridos anda­vam metidos com aquelas biscates nojentas.
- É lógico que ele sabia, a cidade inteira sabia. Acontece que os homens acham que têm direito e pronto...
- São uns crápulas, fazem o que bem entendem...
- É, o negócio deles é chegar em casa e ter a mulher esperando que eles cheguem bêbados e sujos, sabe-se lá com quem andaram e o que andaram fazendo...
- Ah, mas isso nenhuma mulher agüenta. Cada vez mais eu tenho nojo do Nestor. Vai chegar uma hora em que eu terei que ...
Anita põe-se a chorar em um pranto desabalado que Terezinha até ­se assusta com as convulsões.
- Deixe disso, Anita, aquele canalha não merece isso. Cuidado, Alexandre e Adriana podem estar por perto. Não deixe nunca eles verem ­isso, senão que forças terão para te ajudar? Eles têm em você um exemplo de força.
- Tem razão, Terezinha - rebatia Anita, já se recompondo do pranto e enxugando os olhos com as mãos.
- Olha, querida, estamos aqui para comemorarmos o Natal. Hoje é dia de alegria, de festa, apesar de tudo.
- É mesmo... você tem razão, estou atrapalhando tudo, não é?
- Não. Não foi isso que eu quis dizer, Anita. Estou dizendo apenas que não podemos nos deixar abalar pelos problemas. Um dia tudo há de se resolver.
Nestor, homem alto, forte, cabelos ondulados e negros, na plenitude de seus trinta e poucos anos, andava para lá e para cá, com um copo de bebida na mão, resmungando:
- E Anita que não chega nunca? Ela disse alguma coisa pra senhora, mãe?
- Não, não me disse nada, como sempre. Pra ela aqui eu sou um zero a esquerda. Não me dá satisfação nenhuma.
- Ora, mãe, não exagere. Anita é minha mulher ...
- Eu sei, filho, mas esta morando aqui em casa praticamente. Eu tenho o direito de saber das coisas, pelo menos dos meus netos.
Acho que ela foi passar o Natal na casa de alguma amiga - inter­feria Adolfo, irmão mais novo de Nestor.
- Ah, mas se aquela descarada fez isso, vai se arrepender ...
- Deixe disso, meu irmão. Você e Anita precisam se entender. Não acho correto você ficar pressionando-a. Até bater nela você já chegou. Que é isso, Nestor?
- Não se meta nisso, Adolfo. Sou eu quem resolvo minhas coisas. Cuide de sua vida...
- Êi, gente, estamos no Natal, não é hora de brigas...
Nestor toma aquela bebida num só gole e sai da sala, onde todos os familiares estavam reunidos para a chegada da data magna da cristandade.
- Essa história de Nestor e Anita ainda vai acabar mal. Coitada da Anita – sussurrava Afonso para a namorada.
Na casa de Terezinha o ambiente natalino era bastante diferente. Todos conversavam animadamente. Em dado momento a anfitriã anuncia.
- Gente, chegou a hora. Atenção, todos aqui reunidos, porque Renato vai cantar pra gente.
- Viva - gritavam em coro todos os presentes.
Renato pega o violão, ajeita-se no banquinho e vai encantando a platéia, que ali se formava para ouvi-lo: "Quero a paz neste Natal, refletindo a todo mundo, e pedir ao Papai Noel, de presente uma ora­ção, pra que seja eterno o Natal e o mundo todo irmão".
Anita vai se envolvendo no conteúdo bonito daquela canção e as lágrimas começam a brotar de seus olhos. Fica pensando consigo: "Se todos estão felizes, porque eu também não posso? O que essas pessoas têm ­mais do que eu? Não, decididamente no ano que vem eu não vou passar por isso...”
Hora de voltar para casa. Todos se despedindo, votos de um Feliz Natal, sorrisos, abraços fraternos, confraternização, taças de champagne tilintando, esperanças renovadas, promessas de renovação, beijos. Anita. Alexandre. Adriana. E para eles, como seria dali pra frente?
- Onde você esteve? Todos aqui em casa estavam esperando você e as crianças.
- Ora, Nestor, fui passar o Natal na casa de Terezinha.
- Podia ao menos ter me avisado. Fez todo mundo aqui em casa de palhaço.
- Ué, mas você sempre passa o Natal e fim de ano com seus amigos cachaceiros no Bar do Mandi.
- Não chame meus amigos de cachaceiros, que é isso...
- Tá bom, Nestor, vamos parar por aqui. É que faz uns quatro ou cinco anos que você não passa o Natal em casa.
- E daí, sua obrigação era me avisar.
Anita resolve não mais discutir com o marido. Ele estava cambaleante. Conhecia-o bem. Aquilo era um barril de pólvora, bastava uma fagulha pra tudo incendiar. Mais uma vez resigna-se à sua condição de esposa e aceita os insultos.
- Terezinha, ele voltou a me bater. Vou ter que matar aquele homem.
- Não, não faça isso, Anita. Não seja louca, vai estragar a sua vi­da. Com uma atitude dessa, impensada, você só vai piorar as coisas.
- Ora, Terezinha, como é que ele pode me bater a hora que quiser?
- Acontece que a mulher é sempre a errada. Dirão que Nestor era um homem trabalhador e cumpridor de seus deveres e você, a mulher que tinha tudo em casa, que vivia batendo perna pela rua. As leis foram ­feitas para defender os homens, porque foram feitas pelo homem. Você sabe como são essas coisas. Pelo que você me conta nenhum dos irmãos dele e até seus sogros, estão do seu lado...
- Pois é, até quando vou carregar essa cruz?
- É uma situação difícil, amiga. Você está pagando um preço muito alto por seu erro. Você já falou em separação?
- Já, claro que já. Ele reagiu de forma violenta. Me chamou de sem vergonha e tudo o mais. Além disso pra onde e que eu vou com duas crianças?
-Não há mesmo jeito para uma reconciliação?
- Eu não suporto nem mesmo o cheiro dele. Você sabe lá o que é ter que agüentar isso?
O tempo vai passando. Anita. Alexandre e Adriana. Aquela situação. Dona Marieta, mãe de Nestor, sempre ali por perto ouvindo discussões, comentando com a vizinhança a sem vergonhice da nora. Imagine. Ela tem de tudo em casa. Meu filho é um homem bom, nunca fez mal pra ninguém na vida. Ela só sabe reclamar de tudo. Meu filho outro dia até comprou uma geladeira, com sacrifício. O que mais ela quer? Tá certo que ele às vezes vai beber com os amigos no bar, mas e daí? Ele é homem, tem o direito. Além disso qual homem que vai fi­car enfurnado em casa ouvindo os choramingos da mulher? Eles estão morando aqui nos fundos de casa, não pagam aluguel. Não é qualquer ­sogra que faz isso. Sou uma verdadeira mãe para ela, aceitei ela aqui em casa, já embuchada. É bem verdade que ele andou batendo nela algumas vezes, mas ela deve ter merecido. Meu filho não ia bater assim ­nela à toa. O que ela fez? Não sei, só sei que meu filho, bom do jeito que é, não ia bater nela sem motivo. Tem gente que não sabe agra­decer o que tem.
Anita. Alexandre. Adriana. Que vida, que bosta de vi­da. Que brigaiada, que tanto de discussão. Que baixaria.
- Mãe, eu quero bisteca. Outro dia fui na casa de Felipe e a mãe ­dele fez bisteca no almoço.
- Esta bem, Alexandre. Mamãe vai dar um jeito.
À custa da venda de alguns objetos que possuía em solteira, Anita consegue alguns parcos cruzeiros e compra bisteca para o filho. Dona Marieta observando.
Mais um ano se passa. Fim de ano. Correria para fazer as chamadas "compras de Natal". Brasileiro é assim. Adora ser repetitivo, ama a mesmice, se deleita na redundância, se esbalda na vulgaridade do habitual. Natal. Mania de beber vinho e comer leitão! E os votos de Feliz Natal? Que chatice que são. Todo mundo se acha na obrigação de esbanjar sorriso, esquecendo-se que leva uma vidinha fodida o ano inteiro. É Natal? Oba, vamos esquecer tudo que fizemos de ruim. É aniversário de Jesus Cristo. É mesmo? Nem sabia. Então porque está bebendo e comemorando? Não sei, todo mundo está, oras! Árvore de Na­tal. Cuidado, não deixe cair as bol... Nossa, caiu tudo no chão, que­brou mais da metade. Vem cá, vou lhe dar umas palmadas bem dadas.
Mas, espere aí, não é Natal? Cadê o clima de irmandade, de confraternização? É mesmo, ia me esquecendo. Natal é isso, né? Mas depois que passar o Natal você me paga.
- E aí Nestor, ainda esta na cachaça?
- É meu, estou bebendo desde ontem. É para comemorar o Natal, né ô meu? Grande Natal ...
- Como vai Anita?
- E eu lá sei daquela cadela?
- Peraí, é sua mulher, rapaz, como pode falar as...
- Esquece, esquece, vamos beber, põe seu copo aqui... Afinal é Na­tal, cara... o negócio é encher o carão... ah, ah, ah, alegria total... Anita. Alexandre. Adriana. Presentes de Natal. Ih, que saco, aquela boneca de plástico da venda do seu Manduca. Caramba, aqueles homenzinhos da TV outra vez? Eu tava a fim mesmo e de um videogame, como os meus colegas têm... ou aquela bicicleta de marcha. Será que papai pensa que ainda tou nessa de brincar com essas miniaturas?
Isso é Natal? A mesma coisa do ano passado. Mudou só a data. 1987. Um ano de plano cruzado, plano Bresser. Que grande bosta. Anita pede a Nestor que passe o Natal em casa. Tem pinga? Tem vinho? Então tudo bem. Adormecem. Dia seguinte. Nossa, que calorão.
Olha, Anita e Nestor nem levantaram ainda. Como é que podem dormir com um solão destes? Mas, peraí, já são quase três da tarde. Vamos chamar por eles, o almoço já está na mesa. Silêncio. Tornam a chamar. Novamente silêncio absoluto. Batem desesperadamente à porta. Resposta: silêncio pleno e absoluto. Entreolham-se assustados. Será? Porque não abriram a porta? Aconteceu alguma coisa. Vamos arrombar... É isso, vamos lá, força aí..... Uhhhh, ah... Pronto ... Cadê eles? Nossa ...
Estão lá... Meu Deus! Anita, acorde.. Meu Jesus, ela não se mexe... Veja, Nestor está meio roxo e com a língua entre os dentes como se estivesse mordendo alguma coisa... O que é isso? Santo Cristo, tem a caveirinha na embalagem, é veneno... Então... Isso mesmo... Pobres crianças, não foram poupadas... Que grande covardia. Anita, abraçada às crianças sobre o sofá e Nestor, caído sobre o tapete do chão, com um copo quebrado a seu lado. Último Natal da família... Infeliz Natal...
Vejam só o que deu. Eu não dizia? Pobre Nestor, não sabia a cadela que tinha em casa. Mulher mal agradecida. Não tinha o direito de acabar com a vida de um homem tão bom como meu filho. Ele era trabalhador, honesto, bom pai de família, alegre. Ela sim, que devia morrer sozinha, à míngua, seca, esturricada, mas não dar fim na vida do pobre do Nestor. Cadela, sem vergonha, há de queimar no fogo do inferno. Vivia batendo perna pela rua, fazendo não sei o quê. Outro dia, ainda, saiu de casa levando umas coisas, sei lá pra que. Voltou, logo depois, com um embrulho na mão. Sabe-se lá por onde andou e o que andou fazendo. Coisa boa é que não era. Acho até que ela tinha um amante. Sem vergonha... cadela. Ainda bem ela se foi, e se foi tarde...

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