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sexta-feira, 26 de junho de 2009

Conto "ANTES QUE SEJA TARDE"

ANTES QUE SEJA TARDE

Conto:

NOZIEL ANTONIO PEDROSO

maio de 2007



Um bonito rio, qual serpente de prata reluzente, cortava aquela região próspera, onde muitos fazendeiros revezavam-se no cultivo de terras e quantidade enorme de rebanho bovino. Transcorria o ano de 1951. O mundo procurava se recuperar das agruras da Segunda Guerra Mundial que ainda deixava vestígios, apesar desse lamentável episódio ter acontecido de 1939 a 1945. Ali, a apenas três léguas da cidade, era agradável aos olhos aquela imensidão de terras ocupadas por inúmeras plantações e pastagens, o que igualava-se a um gigantesco tapete verde a se perder de vista. Para comandar o vultuoso rebanho, Afonso Mesquita, dono da fazenda, havia contratado boiadeiros experientes da região. João Ataíde, o Camarão, Espiridião Santana, Santantão, Bernardo Torquato, Araribá, Lázaro de Almeida, Lambari, eram alguns deles. Mas nenhum se destacava mais que Henrique Feliciano, mais coinhecido por Escorpião. Decerto, o homem de estatura mediana e ágil atirarador de facas, não tinha esse apelido por conta de seu signo no Zodíaco e, sim pelo seu veneno. Conta-se que o boiadeiro era capaz de qualquer coisa por dinheiro, a única linguagem que ele conhecia. E nessa sua vida de "cangaceiro" Escorpião já havia sujado as mãos de sangue por diversas vezes. Geralmente as vítimas eram grileiros de terras, ou desafeto de algum fazendeiro insatisfeito, que "encomendava" o sumiço do oponente via saraivada.
Noite de São João. Uma grande fogueira soltava faíscas e esquentava a noite de inverno. As pessoas aproveitavam o fogo para assar batata e pinhão. Grande festança. Crianças a brincar, sanfoneiro a tocar para animar a festa. Algumas pessoas dançando pelo salão. Aquela morena era formosa, os cabelos pretos e longos caíam por sobre os ombros e chamava a atenção dos homens. Saracoteava pra lá e pra cá, com uma leveza peculiar. Era Rutinéia, uma bela cabocla, que habitava aquelas paragens. Escorpião botou os olhos na moça e ficou babando de paixão. Após alguns encontros pelos matos da imensa propriedade, Henrique propôs á camponesa, concubinato. Depois de um certo tempo, o boiadeiro viu-se cercado por cinco filhos. A vida em família era por demais tumultuada, pois Henrique não era lá o que pode se chamar de homem sensato, de bom tato e comportamento convencional. Batia na mulher e nos filhos, principalmente quando estava bêbado. Essa situação era do conhecimento de todos ali pela redondeza.
Maria Aparecida Feliciano, filha mais nova do casal, era a que mais sofria com a situação. De todos os irmãos, nascidos naquela fazenda, Cidinha foi a que deu mais trabalho na hora do parto. Quase matou a genitora, que sofreu horrores quando da parição. Por conta desse incidente, a garotinha sofria nas mãos do pai e, o que é pior, também da mãe, que nutria por ela um rancor e um ódio sem razão de ser.
Face á essa situação inusitada, a pobre menina era jogada de lá pra cá, feita uma cachorra sem dono. Ora ficava na casa de uma tia, ora ficava na casa da avó. Ou, ainda, com parentes próximos, distantes, e até com estranhos, que penalizavam-se com a triste situação da criança. E o pai, sempre bebendo e maltratando a família, mas Cidinha estava, de certo modo, livre das maldades dos pais, uma vez que, na maioria das vezes, morou com outras famílias.
Na pequena cidade, o Lar das Irmãs Cambonianas, uma entidade filantrópica, cuidava de pessoas carentes, doentes e desamparados. Vira e mexe, casais abastados, oriundos das mais distantes cidades, iam para lá, a fim de contribuir com aquela pequena instituição altruísta, devido aos convênios que a entidade mantinha com redes públicas. Aconteceu de um belo dia, Ataíde e Hilda, botarem os olhos em Cidinha. De cara gostaram da menina, que já ostentava em seu semblante marcas de sofrimento. Coitadinha, com uma carinha tão sofrida. "Quero falar com os pais dessa menina. Pretendo levá-la para São Paulo e dar-lhe estudo". "Tudo bem, vou chamar o pai dela". E algum tempo depois dava as caras por ali Henrique Feliciano, aquele homem grosseiro, com cara de mau. "O senhor é o pai dela? Deixe-me levar a menina para morar na Capital. Há mais chances dela se desenvolver por lá. Lá tem mais futuro". "Nada disso, enquanto eu for vivo, essa menina vai ficar por aqui mesmo. Mas, depois que eu morrer, aí sim, podem levá-la para onde quiserem." Foi com essas palavras que Henrique decidiu o destino da filha caçula.
Entretanto, o que parecia distante e improvável acabou acontecendo dias depois. Parecia até uma profecia. Depois de bebericar pelos bares da vizinhança, o boiadeiro cruel lá vinha em seu cavalo, no mais intenso galope. O homem castigava o animal no chicote, de modo que o alazão colocava sebo nas canelas. O cavalo, enfurecido pela dor, corria cada vez mais. Não deu outra. Quando estavam próximos a um enorme barranco, o parelheiro caiu de mau jeito, levando o boiadeiro a voar pelos ares. Henrique caiu no chão com tudo e sofreu traumatismo craniano, ao bater a cabeça numa enorme pedra. Isso levou-o á morte, horas depois. Terminava ali a vida daquele boiadeiro, que tanta maldade havia feito. Que seria dele agora? Dizem que Deus escreve certo por linhas tortas. Não seria então um castigo aquele acontecimento? Todos diziam que sim.
E Cidinha, o que seria de seu destino agora? Será que aquele casal iria cumprir a promessa de levá-la para a Capital? Como é que seria a vida por lá? Pensamentos dessa natureza, dúvidas, incertezas e fantasias, infestavam a cabecinha daquela loirinha bonitinha, que agora via-se frente á frente com seu destino incerto, aliás destino esse que toda vida sempre foi errante e sem direção. Agora haveria uma oportunidade dela mudar de vida de vez e, desvencilhar-se das maldades que tanto sofrera na infância. "Sim, vou aceitar, não aguento mais essa vida nesse lugar atrasado. Tenho certeza que vou me dar bem", pensava Cidinha, enquanto tentava formar na cabeça a imagem de uma cidade grande, com prédios, carros e bastante gente se movimentando.
O tempo havia se arrastado para a sofrida menininha e, contava ela agora com nove anos. Cidinha, não obstante a tenra idade, tinha o coraçãozinho sofrido, magoado, pelo que havia passado com os pais. Mas, o que mais a desgostava, era o fato de sua mãe odiá-la. Não era possível que isso tivesse acontecido. Na maioria das vezes, a mãe é sempre a figura protetora da criança, principalmente quando se tem um pai violento e boçal, como era o caso. Cidinha não tinha nenhum alento, não tinha ninguém no mundo que se importasse com ela, já que as pessoas que mais deviam ampará-la e preservá-la, eram os que mais a maltratavam. A bonita garota entrou de cabeça e, apesar da pouca idade, sentia-se já com determinação e bastante segura do que queria e desejava. A vida havia lhe ensinado que deve-se agarrar a primeira oportunidade, quando se quer mudar de vida. Se é que aquilo podia ser chamado de vida.

SÃO PAULO, Capital de um dos mais importantes estados brasileiros, em termos de polo industrial e expansão territorial, fins de 1968, início de 1969. Edson Arantes do Nascimento, até então o maior jogador de todos os tempos, mais conhecido por Pelé, perto de fazer seu milésimo gol. O Brasil governado por Arthur Costa e Silva. Cidinha agora prestes a entrar em um outro ritmo de vida, cidade grande, coisa de Capital. Ataíde e Hilda estavam realmente empenhados em oferecer á sofrida menina, uma vida mais digna.
E as regras de convivência? Cidinha teria de ser praticamente reeducada, uma vez que havia um enorme disparate entre seus pais e seus protetores. A família, depois de um certo tempo, fixou residência em uma outra cidade, próxima do mar. Ótimo. Cidinha havia aprendido muita coisa, cursou o primário e o ginasial. Estava gostando de quase tudo em sua nova fase, mas apenas um fator atrapalhava a vida da menina: o isolamento. Cidinha não podia sair de casa, vivia praticamente presa. Não que o casal guardião fosse mau, queria apenas preservar a menina.
Acontece que o tempo passou. Havíamos adentrado já o ano de 1978, o Brasil havia acabado de deixar a Argentina, onde participou da Copa do Mundo, saindo derrotado de campo. O Presidente do Brasil, Ernesto Geisel, encontrava-se prestes a deixar o cargo e João Baptista Figueiredo, o próximo General do Exército a tomar posse da Nação. Maria Aparecida Feliciano estava agora com 19 anos. Tornara-se uma bonita moça, cabelos louros cacheados, olhos verdes, cintura fina, pernas bem torneadas, sorriso cativante e o que mais chamava a atenção de todos: a fina educação, bons modos, polidez e bondade. Cida era uma garota digna de povoar os sonhos de qualquer homem de bom senso. Seu coração, porém agora cicatrizado, não abrigava ninguém. Talvez, inconscientemente, estivesse se reservando para algo especial.
Mas um acontecimento brusco e gratuito, desagradou profundamente a mocinha sonhadora. Final de ano, o Clube Regatas anunciava para o Rèveillon a apresentação do Conjunto Face Oculta, que era o mais popular grupo musical do momento. E Cida, como qualquer mocinha de sua idade, estava doidinha para ir ao baile. O casal guardião até concordou em deixar sua protegida se divertir com as amigas e dançar, afinal não havia nada de mal nisso. A bonita garota iria ao baile, não fosse a intervenção de Solange, a falsa amiga da menina. A invejosa chegou até Ataíde e Hilda e destilou seu veneno. Disse ao casal que Cida já tinha combinado de se encontrar com um rapaz, de caráter duvidoso, e até que os dois iriam cair no mundo, juntos. Que já há algum tempo Cida estava com essa idéia na cabeça. Diante dessa notícia reveladora, os guardiães resolveram bater pé firme e não deixar a moça sair de casa. A moça ficou estupefata com a negativa do casal e, bastante surpresa com a atitude deles, uma vez que ela negou todos os fatos narrados pela delatora.
Face ao bom relacionamento que mantinha com o casal guardião, isso foi um divisor de águas na vida da garota e deixou-a muito chateada e até magoada, com a falta de confiança daqueles que ela até considerava como seus pais. Cida recolheu-se ao quarto e chorou por essa grande injustiça.
Ponderou bastante, passou praticamente a noite em claro, pensando em tudo que já lhe acontecera nessa sua vida quase que errante.
Pensou e chegou a uma conclusão: "vou pedir para ir embora".
No dia seguinte, sem drama nem rodeios Cida solicitou ao casal seu retorno á terra natal. A viagem não fôra como aquela da vinda, cheia de expectativa, de emoção, de sonhos. A viagem de volta foi triste, resignada, vazia, técnica, automática, sem qualquer sensação.
E a readaptação ao antigo ambiente? Como seria? Cida estava até preparada para esse choque. Tal como havia previsto, o desconforto era enorme. A moça, educada na Capital e de hábitos finos, encontrava-se até titubeante frente á nova situação. E sofria muito com a nova realidade. Cida, moça já feita, infância sofrida, passado inexpressivo e obscuro, entre a liberdade e a repressão. O que mais faltava agora? O que mais a vida estava lhe reservando? Ás vezes ela pensava consigo que tinha vindo à terra só para sofrer. Não era possível que ela fosse perseguida por tanto sofrimento. Estaria ela pagando por alguém através de reencarnação? Porquê? Haveria sobrado infortúnio para qualquer outra pessoa na face da terra? Ou todo sofrimento do mundo estava direcionado apenas para si?
Faltava um amor na sua vida. Nunca que seu coração havia batido forte por alguém, mas aquele rapaz lhe chamou a atenção. Cida gostou dele, logo de cara. O tipo de paixão à primeira vista. A moça carecia de um pouco de felicidade, já que a vida havia lhe castigado por demais. Ah, vou tentar, quem sabe a redenção de todo sofrimento por que passei, não está nesse rapaz? Mereço um teto, uma vida digna, um raio de sol, uma luz no túnel, um arco-íris. Cida, nos braços de Antenor. Que tal morarmos juntos, fazermos uns filhos? A moça sofrida investiu alto na relação, que ela via como uma mudança radical na sua vida. Até que enfim, valeu a pena esperar tanto tempo, passar por tudo que passei. Agora sou feliz, tenho cinco lindos filhos. Diga-me você, aonde vou colocar toda essa felicidade? Ás vezes acho que é injusto eu ter tanto amor, tanta felicidade e outros não terem quase nada. Mas... que remédio, a vida nem é sempre justa. Vejam o que aconteceu comigo quando era criança, sofri muito, fui humilhada, maltratada, agora sou pararicada, valorizada, respeitada e até invejada por muitas mulheres. É difícil achar alguém que tenha um homem tão perfeito como o meu: educado, generoso, romântico, inteligente, compreensivo, calmo, pacato. Você aí que está lendo, quer um pouco de felicidade? A vida finalmente compensou todo sofrimento que tive. Acho que em sua essência, a vida é isso. É a gente passar maus bocados, sofrer, enfrentar dificuldades, chorar, se desesperar, mas nunca esmorecer e resignar-se frente ás situações vivenciadas. Assim sonhava Cida, em sua fértil imaginação. É bem melhor fantasiar a lancinante realidade, do que render-se a seus escabrosos efeitos. Levando-se em conta que o ser humano é capaz de usufruir do poder da mente, Cida camuflava sua realidade com as mais edificantes fantasias.
Sim, a vida estava á sua frente, palpável, incandescente, despida de qualquer perspectiva, crua, evadindo-se pelas laterais, transbordando por entre as agruras daquele dia-a-dia contundente, tosco, obscuro, perpendicular. Vou render-me á fantasia, vou esbaldar-me aos devaneios. ANTES QUE SEJA TARDE!

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