ESPELHO, ESPELHO MEU
Conto:
NOZIEL ANTONIO PEDROSO
Agosto de 2008
Tudo quanto era tipo de espelho e pente, acredita-se, ela já utilizou. Quem sabe até aqueles indianos, chineses, das feiras de Nepal, de Amsterdã, dos mercados africanos do Cabo Verde, de Angola, das aldeias européias de Portugal e França. Nunca vi coisa igual. Tornou-se um vício, um comichão, um troço exacerbado, exagerado, extremado. Aquela interessante mulher, ostentava uma altura equivalente a um metro e sessenta e dois, magrinha - de pouco mais de três arrobas - corpinho bem assentado. Não sossegava o facho enquanto não pegasse o espelhinho, desse uma boa olhada na cara e ajeitasse o cabelo. E a coisa acontecia a cada cinco, dez minutos. De vez em quando entortava a boca, conferia a limpeza dos dentes, fazia uma careta, como se estivesse duvidando que era a cara dela mesma que estava ali estampada. Era até enjoativo. Aquilo estava enchendo o saco de todos ali. Mas Onivaldete não largava daquela mania, por mais que as pessoas falassem que aquilo estava já demais. Onde já se viu uma mulher com essas maneiras, ficar de espelhinho na mão a conferir a performance facial? E o que é pior ainda, ela retocava o batom ali mesmo, na frente de todos. Que coisa mais fora de ética, que falta de protocolo, bons modos, diziam alguns. Mas aquilo era comum ali. Que se há de fazer, né? Nesse nosso mundo existe de tudo. Tem gente polida, gentil, mas tem também aquelas grosseiras, toscas, sem um pingo de classe. Não podemos, nem devemos esperar que todos sejam como a gente espera. E, acredite, mania de beleza à parte, a moça ainda se achava feinha, ajeitadinha mas feinha. Pode?
Onivaldete tinha um amigo muito chegado, que vivia pegando no pé dela, com aquele costume chato. Ora, deixe disso mulher, que falta de bons modos ficar se embonecando na frente dos outros. Vá ao banheiro, num lugar reservado, caramba. Seja discreta. A mulher tem que ressurgir maquiada, mas sem que ninguém assista sua investida na beleza, senão, que graça tem? Fica sem brilho, sem surpresa, banal, reles, mixo, pobre...
E a menina fora disso, até que era engraçadinha. Tinha um andarzinho assim ligeirinho, vivia com os lábios a brilhar, por conta do batom cintilante, usava sapato de salto e bico fino, blazer, lingerie da Du Loren, coisa e tal. Beijoqueira como ela só, vivia a tascar selinhos. E que boca limpinha tinha a moçoila. Era gostoso o contato aconchegante com aquela boca. Só se sentia o cheiro agradável do batom. Vivia sempre de “cabeça feita”, ora no salão da Terezoca ou na Soraia Cabeleireira. É, a moça vivia numa chiqueza só. Mas apesar disso tudo, às vezes Onivaldete carregava uma tristeza no olhar, uma mágoa na alma, uma disformidade quase ascendente na personalidade. O que será que a moça escondia por detrás daqueles momentos em que ela dava aquela risadinha marota? Sofrera de depressão no passado, e dizem até, por conta de um amor não correspondido. Ela nutria uma paixão sem fim por Jair Calazans Emicciolli, que apesar do sobrenome pomposo era pobre. Mas o jovem era trabalhador e bastante esforçado. Ganhava a vida como vendedor de anúncios numa rádio local e era representante ainda da Comercial Veronese, uma empresa de gêneros alimentícios e enlatados.
Mas os negócios não iam bem. Coitado do Jair, ele não tinha culpa que o dinheiro não circulava na cidade e região. Ele tinha que dar um jeito de sair de Remanso, fazer vida em outro lugar mais evoluído. Mas cadê que aparecia uma oportunidade? Jair continua ali, com gastura, doido para se livrar daquele marasmo. Mas registra-se um dito popular: quem espera sempre alcança.
Um dia apareceu uma oportunidade de ouro, um lugar como supervisor numa empresa de lacticínios, que trabalhava em parceria com uma usina situada na França. Ele conseguiu tal empreitada numa de suas andanças como vendedor. Conheceu um comerciante rico e lhe deu um bom desconto nas compras, já que ele comprou uma grande quantidade. Olha só que grande salto deu o rapazinho do interior. E lá foi-se ele para Le Monde Du Lait. E Onivaldete, hein? Se tivesse investido no cara, isto é, se não se preocupasse com dinheiro, posição social e uma gama de materialidade, até que podia ter se saído bem. Casou-se com Afonso Lucera Lambisani Pandolfi, um empresário do ramo de transportes, que na época até que estava bem. Mas as coisas mudaram. O setor entrou em crise e o tal empresário começou se afundar em dívidas, já que era um verdadeiro mão aberta, vivia promovendo festas e mais festas para os amigos, jantares. E o dinheiro sumindo, a grana entrando pelo ralo.
Até que houve um tempo em que ele, com a ajuda de Adelino Assunção, um tipo sabichão que era conhecido como Carrapicho, amigo dos velhos tempos de escola, começou a dar pequenos golpes na empresa Terra Viva, que era representante de insumos agrícolas. Carrapicho fazia o transporte de insumos para três postos agrícolas que havia nas cidades vizinhas. De início ambos surrupiavam pequenas quantidades, tipo para a pinga do dia. Depois foi crescendo a ganância e junto com ela a imprudência e o descuido. O dono da empresa, juntamente com o contador, começou a ficar encucado com o volume de produtos que baixavam muito depressa no controle de estoque e, isso não batia com a quantidade da receita registrada.
A partir dessa desconfiança, toda contabilidade era controlada com rigor pelo contador. Até que uma noite fizeram tocaia dentro do depósito. O empresário agrícola, juntamente com o Delegado, policiais e três testemunhas, pegaram de jeito o ladrão e seu comparsa. Não houve acordo. O tal empresário, outrora endinheirado, foi tomar café de canequinha e ver o sol nascer quadrado. A lei funcionou neste caso, porque o tal comerciante não era mais tão rico assim. Estava em dificuldades financeiras, enfim não tinha mais poder. E Onivaldete, nessas alturas, se mandou e não mais quis saber de nada. Foi morar numa outra cidade, onde tinha alguns parentes e mudou de vida completamente. Entrou no ramo da moda e levava a vida nesse universo de luzes e ribalta. Puxa, como as coisas mudam, como o tempo passa e arrasta consigo os acontecimentos de outrora.
Nunca mais se ouviu falar de Jair. Que estaria ele fazendo agora? E aí, você soube do Jair? O cara está morando na Avenue Foch, em Paris, casou-se com a filha do dono da empresa e está tornando-se um investidor de primeira. Quem diria hein? Da escuridão do interior, para os holofotes da Europa. Esse sim é que teve sorte na vida. É aquilo que eu digo e repito: ninguém fica rico só com trabalho, não. Há que se ter uma boa mão da sorte. E... às vezes, temos que tratar de fazermos nossa própria sorte, sabe como é, né... nem que seja por caminhos tortuosos... Êh, mas você também, hein... Olha, estamos num mundo que quem pode mais, chora menos. Como diz um velho ditado: camarão que dorme a onda leva!
E Onivaldete, agora, transformara-se mais que nunca numa fissurada pela imagem. O número de espelhos cresceu assustadoramente, e a freqüência com que admirava sua imagem refletida também. Isso estava colocando-a como a mulher que mais se admira no mundo. Uma verdadeira Narcisa. Só falta dirigir-se ao espelho e perguntar: espelho, espelho meu, existe no mundo mulher mais bela, mais nojenta e mais vaidosa do que eu? Certamente o espelho responderia: Não, claro que não, Onivaldete. Você se superou. Não há páreo para você! Você é, com vantagem, a detentora do troféu. Nunca vi coisa igual!
quarta-feira, 3 de junho de 2009
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