Páginas

domingo, 15 de março de 2009

Conto "QUANDO MEUS FILHOS ERAM PEQUENOS '

QUANDO MEUS FILHOS ERAM PEQUENOS

Conto:

NOZIEL ANTONIO PEDROSO

Agosto de 2007

Lembro-me como se fosse hoje. Estávamos ainda a tilintar nossas taças, buscando no ar a renovação da esperança, o êxtase, a alegria imensurável da alma passeando pelo paraíso, a comemorarmos a chegada do novo. Ainda sou capaz de ver brilhos de regozijo a se estabelecerem nos quatro cantos da casa. Minha visão alcança ainda a visualização do mosaico de pedras preciosas a espalhar seu brilho multicor, meus ouvidos captam ainda o som de violinos. Recordo-me, outrossim, com ímpeto sagaz, que achava pouco e bom passar noites quase em claro, fazendo compressas e acompanhando a languidez daquele minúsculo ser, ardendo em febre. Não faz muito tempo, me parece, que o pequeno, entregue aos folguedos, esfolasse o joelho na pedra, sentindo na pele a aspereza e jeito brusco desse nosso mundo tosco, que dele faria parte. Pouco tempo decorreu, quiçá, entre a primeira palavra e a primeira decepção que tive, com aquele ser que habitou minhas entranhas. Quantas vezes corri com o cotidiano, atropelando as atribulações do dia-a-dia para poder dar um pouco mais de atenção àquele que era então a pessoa mais importante e frágil na minha vida. Seguramente aquele tempo era bonito, e mais bonito se tornava ainda quando aquele universo pueril fazia-se presente no tempo e no espaço.
Nunca me esqueci daquela linda manhã quando recebi o primeiro presente. Era um desenho confuso, com traços imprecisos, mais suscitando dúvida que esclarecimento. 0 que realmente seria aquilo? Mas o que importava, se nada parecia? Eu sabia, fôra feito com esmero, com cuidado, num lampejo de fantasia, com precisão impregnada de magia.

Me vem à mente, com total nitidez, que eu deitava-me nas tardes fagueiras a brincar com a brisa, a acariciar as nuvens, qual plumas vagantes que se desfaziam, lépidas, em meus devaneios. Tudo, meu Deus, era tão bom, que eu nem me dava conta que nessa nossa vida terrena, a tragédia, às vezes, anda de mãos dadas e em cumplicidade com a euforia, arrasando com a festa. O fadário, em forma de monstro, não nos poupa de infortúnios, que fazem-nos experimentar uma sensação de horror, sinistro, solidão, resignação, frente a situações que nos fogem das mãos. Não era capaz de imaginar que a dor mais pungente, a pontada mais lancinante, a aflição mais desoladora, estava a me rondar, traiçoeira, pronta a me dar seu bote fatal. Não fazia idéia do quão eu nunca estivera preparada para os solavancos que a vida nos dá, para absorver as agruras que o destino, às vezes, nos reserva, sem piedade. Para mim só existia o brilho do sol, o arco-íris e quem sabe, um pote de felicidade do lado extremo.

Jamais me apeguei a tão tenra e doce recordação quanto aos tempos em que meus filhos eram crianças, puras, qual anjinhos da guarda a enfeitar meus dias. Parecia que toda a energia do mundo estava em minhas veias, parecia que todas as certezas do planeta adentravam minha alma, parecia que todas as árvores do mundo exalavam o mais puro oxigênio que enchiam meus pulmões. Achava que a soma de todos os medos era nada, comparada à minha inclusão na roda viva da dança da exuberância. Eu vivia tão contente, que acenava para o sol e sorria para a lua.
No entanto, quando todas as estrelas serenas pareciam derramar seu brilho sobre a minha pele, quando os mistérios da noite faziam-se longínquos a ecoar estranhos ruídos, aquele acontecimento veio endoidecer todo meu ser. Eu não podia acreditar que meu mundo desmoronara, que aquele nefasto episódio veio a esmagar-me a essência, a torturar-me em crescendo, a estraçalhar-me o âmago, a arrebatar-me a paz e atirar-me à medonha masmorra. Nunca, até então, havia me sentido tão só, tão perdida e desprotegida, tão entregue à inércia e ao destino sem futuro. Perdão, meu Pai, cheguei até a pensar, se não seria melhor eu ter partido antes desse episódio que, seguramente, foi o mais fulminante impacto que atingiu-me de forma avassaladora até o útero. Não, jamais eu seria a mesma, após esse incidente devastador, que abalou-me as estruturas como um tufão em tempestade, arrasando tudo pelo caminho.

Agora sento-me nas tardes vazias, a murmurar de saudade, já sem a cálida esperança de restabelecer contato com a euforia. Nunca havia notado sequer o significado da palavra saudade, até mesmo na canção mais triste já composta por Chico Buarque, PEDAÇO DE MIM, que, em versos sofridos, dispara: “Ó pedaço de mim, ó metade arrancada de mim, leva o vulto teu, que a saudade ao revés de um parto, a saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu”
Apesar do decurso de alguns anos, já não mais acredito na plena alegria, já não conto mais com as manhãs serenas, já não mais dou crédito às promessas do sol, já não mais vejo o desfecho do dia, pois todo sofrimento sugou-me com sofreguidão as forças e a coragem. Não obstante eu tenha caminhado pelas ruas do inferno, nosso Pai Eterno, pegou-me em Suas mãos e assoprou as feridas. Ainda bem. Foi o que me salvou de ter caído para sempre num mar de tristeza e solidão.
Aliás, a duras penas recuperei - por assim dizer - minha coragem, sim, para observar de longe o raiar de um novo dia, de ver findar-se a noite, mas já não mais significam para mim a mesma coisa QUANDO MEUS FILHOS ERAM PEQUENOS.

E ter ciência que isso nunca mais se repetirá, faz-me amargar uma espécie de desilusão e derrota. Porém, sinto que estou sendo afagada pelas Mãos Divinas, o alento mais imprescindível, com a qual fui privilegiada. Mas... a vida continua. Tem que continuar. Há outros seres, no entanto, que amenizaram a dor pela partida de um ser insubstituível... Todavia, transcorram-se dias, semanas, meses, anos, décadas, séculos, milênios, bilênios, trilênios, nada aplacará a dor que sinto desde aquele dia, que preferia nunca ter vivenciado.

Desde aquele 24 de setembro, que as manhãs de primavera não cintilam tanto quanto antes. Nem a doce brisa, em mil anos, me trará de volta a alegria perdida, tampouco a exuberância e perfume das flores me fará regressar ao porto da esperança.



Conto escrito especialmente para minha amiga MARIA DAS DORES PRENZIER OLIVEIRA, referente ao filho Ewald, nascido em 13 de Junho de 1985 e que teve passamento em 24 de setembro de 2004.

Nenhum comentário:

Postar um comentário